a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/02/2014

Favaios ou licor de ervas caseiro

Passa-se qualquer coisa com a cebola.

O Saramago meteu-a no cheiro de um homem de maus agoiros que passava na rua de Lisboa onde morava o Ricardo Reis no seu último ano de vida.

O Shrek comparou-se a uma por ser feito de camadas, vá-se lá saber onde estão as outras escondidas, que eu só lhe vejo a superfície ou então escapa-me a metáfora.

Quando a meto, à cebola, nas minhas sopas que raramente são apreciadas, já de si, cá em casa, ficam sempre umas películazinhas por triturar, nem que eu me agarre à varinha mágica dia e noite até queimar o motor ou até a vizinha me bater à porta, então que é lá isso?

Há, ou pelo menos havia, um restaurante Tailandês em Cascais que tinha como sobremesa, repito, sobremesa, aprimorada, uma coisa cheia de cebola frita que era de ir às lágrimas de deliciosa e que, se fosse hoje, catalogar-se-ia de gourmet, mas como foi muito antes de sabermos o que é gourmet aqui neste nosso Portugal, ficamos pelo aprimorada, está bem?

Ao descascar, partir às rodelas ou pior, picar, sobe-nos aos olhos o ácido libertado capaz de fazer qualquer homem grande chorar como um bebé, que a coisa arde que se farta, a menos que se seja utilizador, àquela hora, de lentes de contacto hidrófilas.

Se a metemos no meio das outras leguminosas na panela de um belo cozido à portuguesa a servir a um domingo com a família alargada, e a deixamos cozer nessa comunidade que promete, torna-se mansa que nem um cordeiro, vira adocicada a safada, e fica capaz de agradar às crianças, população entre a qual não costuma a cebola conquistar muitos likes.

Na minha infância havia as mãos de fada da minha avó que se metiam a transformar as sardinhas que sobravam das almoçaradas de verão à sombra dos pinheiros, num escabeche que me alindava tanto o dia seguinte e não era eu senão uma cachopa. Nunca mais aquele escabeche me surgiu no prato.

Hoje, ao jantar, compus uma combinação de alimentos a que podemos chamar salada, que devia ter uns trinta e nove ingredientes, tal era a vontade, e que incluía uma pequena parte, vinda de um resto de ontem, de uma cebola. Crua.

E agora estou aqui que não há rebuçado que me tire o gosto, portanto é decidir: ou passo a um copito de Favaios ou a um licor de ervas caseiro, a ver se a coisa se compõe.

Em não se compondo, vou dormir. Caso contrário, também.

É que me está a dar a fome.

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