a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

17/02/2014

Meter medo ao drácula

Entro na estação de serviço da auto-estrada e sigo paralelamente aos alinhamentos das bombas de abastecimento, a área está deserta. Estaciono junto à loja, não é combustível que venho comprar, e saio do carro.

O crepúsculo deste sábado cheira a chuva aquecida pelo sol que finalmente apareceu. Inspiro mais devagar, sou mesmo a única pessoa aqui fora.

Ainda faltam oitenta e quatro quilómetros para Lisboa e eu dirijo-me primeiro aos sanitários, é dar a volta ao edifício e entrar na porta lateral. Estes por enquanto distinguem três tipos, homem, mulher e criança que precise de mudar a fralda, a avaliar pela sinalética.

O facebook parece que abriu a lista de escolha do sexo do utilizador a dez tipos diferentes, presumo que masculino, feminino, em trânsito de ser um ou outro, e vão quatro, quanto ao resto não chego lá. Eu acho bem, não me assistem as discriminações sexuais, ainda assim parece-me necessária uma dose de criatividade substancial para encontrar dez sexos diferentes na raça humana. Ou terei lido mal a notícia?

Quando a lei obrigar os estabelecimentos públicos a seguir o exemplo do facebook e ter instalações sanitárias a servir toda esta gente, dez categorias diferentes, a coisa vai complicar-se.

Estou a pensar nisto enquanto me sirvo destas que são fáceis de utilizar nos dias que ainda correm, muito embora tenha entrado sem hesitar na porta com o desenho de uma pessoa de saias, quando uso, agora e quase sempre, calças.

Atiro com o papel com que enxuguei as mãos para o recipiente de plástico branco encostado à parede e saio empurrando a porta pesada que me abre o caminho para a aura crepuscular.

A cor azulada que tudo assume a esta hora do dia faz-me lembrar o verdadeiro motivo que me fez sair da auto-estrada: o tubo de pastilhas mentoladas que vou comprar para enganar o ardor que se instalou na minha garganta.

Na loja está um rapaz a atender, só um, clientes mais ninguém.

Ponho o tubo das pastilhas que retirei do expositor em cima do balcão e ele pergunta-me se quero aderir à promoção dos chocolates, pelo preço de não sei quê levo uma data deles à borla ou coisa assim.

A rapaziada desta cadeia de estações de serviço está bem treinada, todos sem excepção fazem esta pergunta há pelo menos três meses.

- Não, só quero aderir às pastilhas, os chocolates não me aliviam a dor de garganta, obrigada.

O moço riu-se e acenou com a cabeça, paguei e saí.

De volta ao meu lugar atrás do volante, a rodar rumo a Lisboa com o crepúsculo a esconder-se debaixo do manto negro da noite, sinto-me um tanto vazia. Afinal, podia ter comprado os chocolates ao rapaz que não tinha outro cliente, que é sábado, que o pecado da gula que eu havia de cometer talvez até ajudasse à garganta e me aquecesse o corpo, está a ficar frio.

E hoje, segunda feira, quiçá não estaria aqui envolta em mantas e chás, com suores e a cabeça pesada, uma voz de meter medo ao drácula, e, entre espirros e arrepios, a sair-me o texto mais parvinho de sempre.

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