a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/02/2014

Entradas e saídas

Há coisas que não sei não.

Comprei apartamento com garagem não foi? Foi.

E chego a casa seca da silva quando venho de carro e está a chover não chego? Chego.

(espera aí, vou mudar o estilo que isto está-me a parecer o do professor Marcelo)

Vamos lá então.

Abro a portinhola do meio do painel de instrumentos (tablier não sei se sei escrever) do meu carro com um tapa suave de três dedos e retiro de lá o comando da garagem. Pressiono o botão da esquerda, já tive oportunidade de referir que o da direita serve para nada, e o portão começa a subir lentamente. Volta o comando ao compartimento para comandos, e os três dedos de há pouco empurram a portinhola, até se ouvir o clique.

Lá fora a chuva cai de cima e de todos os lados, as bátegas, não, trombas, as trombas de água vejo-as em danças loucas ao vento, translação iluminada pelos candeeiros de rua, está agreste.

No rádio toca, deixa cá ver o que toca no rádio, toca Frank Bungarten uma guitarrada roubada à La Traviata e eu estou aqui toda protegida, embalada, até posso fingir para mim própria que está frio e estremecer um pouco a conferir verosimilhança à situação, antes de o portão terminar o seu longo curso e eu deslizar rampa abaixo com o Bungarten a dedilhar-me os ouvidos, a chuva já estancou, ficou para trás, o silêncio do piso subterrâneo engole-me, não o meu carro não o quebra, vai eléctrico, cúmplice da quietude, um regalo.

Faço a manobra de muitas voltas, estaciono, apeio-me.

A luz branca fluorescente que arrancou a piscar quando entrámos, está agora acesa em todo o seu frio polar e lembra-me a sala de espera do centro de saúde, sendo que no centro de saúde sempre dá para distrair com as conversas das velhotas sobre as doenças dos maridos em competição de gravidade, ora oiça a vizinha.

Assim iluminada, vejo bem o chão cinza mal tratado pela idade, esburacado, as paredes com humidade que escorre aqui e ali e do tecto vejo pingar gotas aspirantes a estalactites em dias como este.

Passo pelas caixas cinzentas que estão no chão encostadas às paredes do acesso que dá para os elevadores, têm buracos nos topos a ver se entram os ratos, eu nunca os vi entrar, sair também não.

A meio do corredor, já me habituei, a luz apaga-se. Oriento os meus passos ao ponto vermelho minúsculo que indica o lugar do interruptor mais próximo. Apagou-se a fluorescência porque o tempo determinado de iluminação é tomado da média dos condutores que são mais rápidos que eu nas manobras de estacionamento.

Mas isto é coisa que não me aborrece, sempre dou descanso aos ratinhos que podem espreitar pelos buracos das caixas cinzentas na ausência da luz e eu sou poupada à fealdade do lugar enquanto me sinto pairar em vácuo de tão escuro que está.

Na manhã seguinte, todas as manhãs seguintes, faço o percurso inverso, começo o dia a atravessar o lugar húmido, cinzento, velho e frio que é esta garagem.

Aos ratos das caixas cinzentas não dou os bons dias que nunca os encontro.

E isto sim, aborrece-me.

Mesmo com chuva, vou reconsiderar as minhas entradas e saídas, comprei um apartamento com garagem? Comprei.

Posso não a usar? Posso.

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