a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/03/2014

Oitocentos metros

- Por aqui só se eu fosse um javali.

O técnico da empresa de comunicações diz que por ali só se ele fosse um javali.

Está escuro como breu, o sol já se pôs há horas e a chuva miudinha, que embora arranje algum brilho à noite, não ajuda nada ao caso.

Pela quarta vez estou na casa da serra, de combinação com mais um dos muitos técnicos capazes de ligar o serviço de internet que não está pelos ajustes para se chegar cá acima. Daqui toda a gente partiu há décadas quando a internet estava por nascer e a família de fios telefónicos que cá ficou a passar de poste em poste entrou em pré-reforma devido a falta de trabalho.

- Os meus colegas não ligaram os fios e é preciso subir ao poste, está a perceber?

O técnico das comunicações não estava feliz por ter de subir ao poste telefónico que se situa uma dezena de metros mais abaixo no monte, mal se vê daqui, coberto até um terço da sua altura por silvas e arbustos indefinidos nesta noite chuvosa de um março irritante.

Balbuciei um pedido de desculpa, afirmei que estava em crer que o serviço era mesmo só ligar os fios dentro de casa desta vez, se eu soubesse não teria combinado a uma hora destas.

Ele estudou a berma desta estrada artesanal, procurou-lhe um acesso, andou para a esquerda e para a direita até que encontrou uma entrada, por aqui deve dar, com o pé calcou o chão a ver se tem firmeza que chegue, parece que sim.

- Tem uma lanterna, a senhora?

- Não... não tenho uma lanterna... e agora?

- Agora vai com a luz do telemóvel, se a bateria aguentar!

Aprovada a abertura para o caminho de silvas altas até ao poste, o técnico da empresa de comunicações regressou à carrinha branca estacionada na rua de paralelepípedos adormecidos pelo tempo.
De lá retirou um fato de correntes e correias que começou a vestir à chuva, pegou no que parecia um martelo e caminhou outra vez rua abaixo com aquele arsenal a fazer uma barulheira que deve ter acordado finalmente as pedras do chão. Depois deixei de o ver.

Em cuidados com este rapaz, corro ao terraço da minha casa, que deita para a encosta, e posiciono-me de vigia ao poste.

Lá está o vulto no topo, a martelar e a emitir barulhos metálicos. Barulhos essenciais, que alguns minutos depois a internet chegou à aldeia em ruínas e entrou-me em casa a cheirar tudo, a ver que tal, a dar turras nas paredes, a internet anda aqui pelos ares, já fora dos fios que a trouxeram, anda satisfeita.

E eu cheguei uma garrafa de vinho das que cá tinha a este rapaz, muito obrigada pelo seu esforço.

Isto passou-se exactamente assim, desta vez não inventei nem um bocado.

Hoje, numa reunião de trabalho, a propósito da necessidade de percorrer uma distância de oitocentos metros, repito, oitocentos metros, entre dois edifícios de uma rua de Lisboa toda jeitosinha para se caminhar a pé, oiço três pessoas declarar que é muito complicado, que não há viatura para a deslocação e que é necessário autorizações, abanam as cabeças, muito complicado. E mais coisas que já não ouvi porque saí a correr para ir vomitar.

Só me lembrei do rapaz que se transformou em javali naquela noite.

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