a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/04/2014

Nevoeiro

- E porque precisas de comprar um biquíni novo?

- Não preciso. Quero. Precisar, preciso de muito pouco, mas querer... é muito que quero! Quero-te a ti, por exemplo. E este ano vou comprar um biquíni novo. Um que me fique bem. O último que comprei foi há cinco anos.

Subimos a serra envolta na noite e em nevoeiro cerrado. Serrado? As palavras metem-se-me pelos dedos como os gatos da família se enrolam nas minhas pernas a fazer gincanas tão suaves que não fosse eu gostar deles não os sentia.

- Há cinco anos? Mas não o tens usado muito, ainda deve estar novo.

Subimos a serra cerrada e da estrada só se vêem as linhas brancas que correm de cada lado nos troços onde foram retocadas recentemente. No resto do percurso nada, apenas este leite vaporoso, denso. O carro sobe muito devagar e eu vou a pensar no biquíni novo. Tenho de perder dois quilos. Depois lembrei-me da cegueira branca que o Saramago inventou e que até deu filme, tão boa foi a ideia.

- Na gaveta os biquínis estragam-se. Ficam a ver as outras peças de roupa entrar e sair, todas as manhãs, todas as noites, e eles nada. Achas que isto tem alguma graça? Não tem.

Vivo com a alma deitada em cama de palavras, quando descansa. Brinca com as letras quando não tem mais que fazer, serrar o cerro não pode passar de uma metáfora, mas cerrar a serra com nevoeiro, pode.

- Isso é uma desculpa para comprares o biquíni novo. De que cor vais comprar?

Branco como a cegueira que o Saramago inventou e que este nevoeiro copiou não dá, porque só depois de três semanas de sol à farta no Algarve é que começo a fazer contraste com o biquíni.

- Castanho ou preto com flores.

Um dia destes vi uma palavra, qual foi? Trocando uma letra virava o sentido ao contrário, mas arrumei-a. Onde a terei posto?

- Hum... com flores?

- Erik, eu estou a pensar em palavras e a tentar lembrar-me de uma tão boa e tu a falar em biquínis.

- Não fui eu quem falou, foste tu.

Bolas, não me lembro. Há-de voltar, se eu não pensar mais nela. Ou quando o nevoeiro se dissipar, quando eu estiver a morrer ou noutra altura qualquer. Devia tê-la escrito.

- Sabes o que quero?

- Já me disseste, um biquíni novo.

- Agora quero-te a ti. Podes encostar o carro?

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