a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

29/06/2014

Desse lado

A serra estende-se à minha frente. O vale, ao fundo, está ponteado de casinhas brancas. Aqui e ali a sombra de uma nuvem teimosa e a cascata, na encosta do outro lado, ouve-se daqui.

O dia amanheceu de uma cor indefinida, era branco e azul ou, pensando bem, talvez apenas cinza. Eu vi porque acordei muito cedo e não pude dormir mais. Os pássaros despertavam também, fiquei a ouvi-los cantar, é dos sons mais belos de todos. Se não houvesse pássaros, como podia alguém ter tentado a música?

Entretanto, a manhã já se inundou de luz e eu decidi escrever-te. As cores estão de volta a todas as coisas, o sol radioso, talvez prenúncio de um dia de verão esquecido do cinza da aurora.

Ontem apareceram no terraço dois grandes gafanhotos de um verde muito vivo. Os gafanhotos ainda me enervam imenso.

Continuo a mesma tola de sempre, mas já não se nota tanto. Aprendemos a disfarçar as inconveniências com que vivemos, eu também aprendi. O meu cabelo já começou a branquear, sabes? O meu rosto também já tem vincos que o tempo cá vai deixando. Mas não me importo, ponho uma cor no cabelo que me devolve a ilusão e para o rosto comprei um creme que tem o cheiro do meu jardim de infância, por isso vai dar resultado.

As miúdas cresceram. Nunca gostaram das minhas sopas (e eu também não), mas cresceram. Devia ter-te pedido que me ensinasses a fazer a sopa, o aroma da tua ainda me alimenta a memória nos momentos em que busco consolo em ti.

Ainda não se partiu nenhuma chávena do teu serviço de chá inglês. Tenho sempre muito cuidado, digo a toda a gente que o serviço era teu. Por falar em chá, agora compro o queijo já fatiado, não tomei jeito a cortá-lo à mão e não quero mais máquinas a encher a cozinha.

Não sei se vais ler isto, talvez possas, em vez de ler, ouvir a minha voz interior, aquela que vou soltando por aqui, na internet; expliquei-te o que é a internet quando me perguntaste, recordas-te?

Mas queria dizer-te que não tive, em todos estes anos, outro momento tão negro como aquele em que te fui anunciar a brutal morte do teu único filho e fiquei sem voz.

E tu, sempre o encontraste desse lado, avó?

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