a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/07/2014

Sangue raro

Quatro agentes da autoridade e uma carrinha dentro da qual sei muito bem que posso manter-me em pé e ainda haver espaço se preciso fosse e eu transportasse uma panela cheia de sopa de grão com espinafres à cabeça, nunca se sabe, todos de azul escuro, os agentes e a carrinha, mandaram-me parar. Foi isto logo após a curva que fiz tão bem feitinha, à direita, no momento em que admirava o logótipo da SportTV já que não há flores por ali.

Caso os parágrafos fiquem de tirar o ar, não por serem maravilhosos pedaços de literatura mas pela extensão que atingem, é do meu nervosismo, só para avisar.

Não havia mais nenhum carro parado, portanto forçaram-me a chegar à frente e fiquei mesmo atrás da carrinha azul escura, com as janelas também todas dessa cor, sem gosto nenhum, mas eu neste momento aceito tudo desde que não se repita aquilo.

Travão de mão que acciono com o pé, o meu carro é assim mesmo, baixo o volume do som e abro o vidro.

- Bom dia, senhora condutora, os seus documentos e os da viatura, se faz favor.

- Com certeza - a voz saiu-me um fiozito vergonhoso.

Retiro da mala a carteira que precisa obviamente de perder peso, abro-a e vasculho os documentos solicitados. A minha mão treme ligeiramente e eu rebobino os últimos minutos que fiz, a rodar pela avenida, mas a que velocidade vinha eu, bolas, será que voltei a distrair-me, logo agora que preciso tanto de umas botas novas devido ao inverno que não sai.

- Aqui tem, senhor agente, este é o do carro - uma vez eu disse senhor guarda e ele corrigiu para agente, por isso agora é senhor agente.

- O do seguro e o da inspecção, tudo certinho, faça favor - estendi mais dois.

- A minha carta de condução, ora veja.

- E o que falta, senhor agente?

Todos estes travessões sou eu a falar, já com o fiozito menos vergonhoso, ligeiramente mais encorpado. O agente da autoridade não fala, apenas inclina a cabeça e vira os meus documentos ao contrário, que eu não lhos dou todos direitos, já disse que estou nervosa. E como ele não fala, eu não vou encher isto de travessões com reticências, tornar-se-ia aborrecido, se é que não se tornou já.

- O seu cartão de cidadão, senhora condutora - agora por acaso falou.

Não estou a adorar ser chamada de senhora condutora, mas em tratando-se de um agente vestido de azul escuro com metade da espessura da minha carteira na mão, aguento-me.

- Ah claro - riso estúpido e nervoso, mal pareço eu - aqui tem.

Passam minutos, acho. O meu coração bate forte e eu repenso na minha condução pela avenida fora, será que me estiquei, eu que tenho tanto cuidado? O agente dá a volta ao carro e vai espreitar os papeis colados no pára-brisas, o seu rosto sem expressão e eu espero.

- Está tudo bem, senhor agente?

- Por enquanto, sim - o homem está de regresso à minha janela.

Pelo retrovisor vejo que os dois carros que tinham sido parados depois de mim, estão a sair. Começo a pensar como vou fazer para pagar isto, agora estou nervosa a sério, os outros piraram-se num instante e eu ainda aqui.

- Isso é o seu grupo sanguíneo, senhor agente? - refiro-me ao A+ que está bordado no fardamento, pouco acima do nível dos meus olhos.

Uma pessoa faz o que pode para preencher silêncios constrangedores que podem acabar mal, ou seja, comigo dentro do estupor da carrinha a pagar uma conta de três dígitos gordos, e pareceu-me este um óptimo tema. Pareceu-me a mim, claramente só a mim.

- É.

Eu aguento tudo. Desde aquele dia de janeiro em que entrei numa carrinha desta cor sem janelas e paguei os trezentos euros do excesso de velocidade,

- Ou isso ou fica o carro, senhora condutora - tinha dito o agente de então que era sorridente e se divertia à minha custa.

Desde esse dia eu aguento os carros a apitar atrás de mim e os condutores a esbracejar ao ultrapassarem-me, eu sou positivamente a única a cumprir os cinquenta quilómetros por hora e não me refiro a esta avenida, nessa é fácil, os semáforos ajudam, refiro-me ao estupor da marechal gomes da costa que aí é que foi e é onde o limite dos cinquenta devia ser muito mais, parvalhões, e eu cumpro e sou gozada, insultada, já conheço imensas sonoridades de diferentes buzinas, mas cumpro.

- Senhor agente, acho muito interessante esse seu grupo sanguíneo, sabe? A+, muito interessante! - sim, é verdade, eu disse isto.

-  Muito obrigado e tenha um bom dia, senhora condutora - remata o agente estendendo-me a papelada que regressou cansada à minha mão radiante.

Portanto, safei-me.

E queria dizer que vou continuar a fazer a marechal gomes da costa a cinquenta à hora, mesmo que tenha de travar na descida, sou a única mas é assim que faço, e vou a partir de hoje, sempre sempre, para além de tentar encurtar os meus posts, prometo, mas isso tem de ser quando não estou nervosa, vou, dizia, gabar com veemência o grupo sanguíneo dos agentes (até sou capaz de acrescentar que se trata de um sangue raro).

É que nem precisei de lhe oferecer um pratinho de sopa de grão com espinafres.

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