a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

12/07/2014

Dois golos

Quero água.

Na porta de embarque há uma máquina de venda automática de bebidas que tem dentro garrafas de água Serra da Estrela.

Meti na ranhura uma moeda de dois euros, cada garrafa custa um euro e trinta, informa a etiqueta. Segui as instruções e recebi o troco. Mas só o troco.

De todas as vezes que me servi de produtos em máquinas de venda automática, assaltou-me o mesmo pensamento imbecil. O que farei se a máquina não me entregar o produto.

Hoje é o dia.

Saquei do telefone e procurei um número nas diversas etiquetas que esta máquina tem. Encontrei, digitei-o. Mantenho, na mão, os setenta cêntimos do troco; se os guardo na carteira misturam-se com as outras moedas e lá se vai a minha fraca evidência, a única que tenho.

Enquanto oiço chamar, pressinto que o meu pensamento imbecil anotado acima ocorre a mais pessoas, vários pares de olhos estão postos em mim, seguem-me os movimentos, vêem que tal. Sinto-me, até, um pouco ruborizada.

- Boa tarde, ora diga, se faz favor.

- Boa tarde. Olhe, eu estou na porta vinte e dois e tentei comprar uma garrafa de água, mas a máquina que aqui está só dá troco, a garrafa não saiu.

Não gosto muito de admitir que digo "olhe" ao telefone, normalmente não o faço, mas por causa destes espectadores que me estão a atrapalhar, saiu.

- Disse porta vinte e dois? Já aí vou, menina, é só o tempo de ir buscar as chaves, está com pressa?

- Pressa? Não, o embarque ainda não começou.

Não passaram nem cinco minutos quando vejo aproximar-se o maior molho de chaves que jamais vi, atrás do qual surge um homem baixo, cabelo todo branco, voz grave, já lhe vamos ouvir a voz, mãos grandes, sorridente.

- Foi a menina que ligou?

A menina sou eu. Não corrigi.

- Sim, fui eu, ainda tenho o troco na mão, veja, a máquina deu-me o troco - mostrei-lhe as moedas coladas à palma da minha mão que vai ficar a cheirar a metal e eu não gosto de ter as mãos a cheirar a metal.

- Vamos lá ver, menina, antes de abrir a máquina.

Tirou do bolso uma moeda igual à minha e seguiu o procedimento. Recebeu o troco, apenas o troco.

- Vê? Foi exactamente isso que me aconteceu.

- Ora deixe cá ver o número da máquina, é que tenho de encontrar a chave certa.

Remexeu nas chaves que deviam ser mais de cem. Encontrou, confirmou o número, abriu a máquina.

Retirou uma garrafa de água Serra da Estrela e estendeu-ma.

- Já sabe, sempre que acontecer, é só ligar e eu venho logo.

Agradeci, admirada com a facilidade com que se resolveu, certa de que o pensamento imbecil não mais me importunará. Os meus espectadores, entretanto, regressaram aos respectivos dispositivos electrónicos onde mergulham a concentração, perderam o interesse em mim; são, portanto, um bocado parvos.

Aproximo-me do vidro onde posso admirar de perto os aviões, abro a garrafa de água gelada, a água assim não é do meu agrado mas a sede está cega, tomo dois golos e ao terceiro anunciam o embarque.

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