a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/09/2014

Lugares ocupados

Quando estacionei para ir comprar a estante, os lugares destinados a veículos de tecnologia híbrida, caso do meu, estavam ocupados por carros nada híbridos e por acaso relativamente feios. Contei isto ao segurança e perguntei-lhe se achava interessante, por exemplo, furarmos em conjunto dois ou três pneus a cada um, ele riu-se, não me levou a sério, mas ainda o ouvi, dois bastam. Não sabe que me acontece muito ter o meu lugar ocupado.

Não peguei no relatório que quero acabar no fim de semana, não montei a estante nova, não fui ao supermercado, não gosto mesmo nada de ir ao supermercado, e então tirei as postas de salmão do congelador e fui ver o filme do António Pedro Vasconcelos com a maravilhosa Maria do Céu Guerra.

O lugar indicado no bilhete que acabo de comprar, está ocupado. Não posso ver se é alguém feio, a escuridão já se instalou. Fiquei noutro, para não incomodar.

Mesmo fora do sítio, quando me sento numa sala de cinema desligo-me, deixo de existir para melhor observar o que se passa lá na frente e depois, no fim, quando me reencontrar comigo e voltar a lembrar-me das postas de salmão e do relatório, posso muito bem já ser outra pessoa. Um filme é capaz de nos mudar o curso da vida, um livro também é ou mesmo um momento (quem viu este filme sabe que é verdade).

Portanto isto faz-se devagar. O filme termina e, antes de me retomar, de voltar à consciência do ser, de ligar os instrumentos de navegação, fico sentada a ver passar a lista dos nomes das pessoas que fizeram o que fizeram. Claro que a pressão de quem me rodeia faz-se sentir, anda lá, anda, levanta-te, já acabou, mas eu fico. Quero reconhecer o corpo, os seus feitores, dissecar-lhe agora as vísceras para lhe beber o suco final, colar-me toda ali até à última letra e já agora para dizer tudo, que às vezes digo mesmo tudo, acho desrespeitoso não o fazer e virar as costas enquanto ainda a Ana Moura cantava para ajudar os nomes a subir, sabemos que para baixo todos os santos ajudam, mas estes é sempre a subir, e que bem cantava a Ana Moura, só que isto de ficar assim, ali, sou eu que sou esquisita, vê-se isso neste parágrafo, que ficou bom para cobertor de grande que está.

Depois, quando me levantei, percebi. Já não era eu.

Talvez esta outra em que me tornei saiba ser a primeira a chegar aos lugares, aos seus lugares.

O salmão, pelo menos, foi muito apreciado. Já o relatório, ainda vai a meio.

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