a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/02/2015

Marília

Estava a entardecer e na praia havia uma festa qualquer.

Uma festa qualquer e uma torre que se erguia muito acima do chão, calculei de repente trinta metros. A torre está localizada quase à beira-mar, construída em estrutura metálica de uma cor clara, uma espécie de tom muito natas batidas, que me dá ideia de ter sido pensada para torre de vigia por ser exageradamente alta, aliás altíssima.  Eu e duas outras mulheres estávamos no topo da torre, provavelmente a vigiar a costa. Não há cadeiras ali.

De repente ouvimos um barulho que parecia um estrondo sinusoidal bem orquestrado, não obstante assustador, e olhámos as três para a água, ao fundo, junto à barra (havia uma barra). Penso que o fizemos com muito estilo e pose. A mulher mais nova é a minha filha segunda e a mais velha é a Marília, mulher muito corajosa que me colhe admiração profunda, sobrevivente de um acidente de aviação e ganhadora de muitas medalhas em ginástica na modalidade paralelas (por exemplo). Eu sou a mulher do meio. Apercebemo-nos as três de certeza ao mesmo tempo que estão a abrir as comportas brutais e em poucos minutos ou muitos segundos a praia será inundada e a festa afogada. A mais nova abeira-se da escada e não desce, salta. Vejo-a lá em baixo do tamanho de um feijão inteiro, conheço-lhe a fibra e não me admiro nada. De seguida vou eu mas não salto, este é o momento em que invoco a memória da decisão que tomei em cima da prancha mais alta da piscina da praia das maçãs há p'raí milénios, e eram só dez metros, quando fazia cabriolices mas não assim tão doidas, saltei da prancha do meio e bem sei o que doeu entrar naquele tipo de betão armado transparente, adiante, que é na torre de tom leitoso que estou. Viro-me então de costas e desço a escada de ferro deslizando com as mãos pelas barras laterais abaixo, penso que se imagina a cena, não uso os pés, foi limpinho. No início da descida, esquecia-me de dizer, gritei para a Marília que pode vir já a seguir, vamos lá que nem rangers salvar isto.

Quando cheguei ao chão, já a mais nova tinha tirado algumas coisas grandes da areia, coisas da festa. Depois, eu e ela arrastámos os dois automóveis antigos que serviam de decoração à praia, situação intencionada para modo chill out, penso eu, e vai um de cada vez, uma de cada lado, foi puxá-los para cima e foi fácil. Conseguimos salvar tudo mesmo antes de a água embater, momento em que acordei.

E é aqui que chamamos o Morfeu, deus grego dos sonhos, qual Olimpo qual quê, chega-te lá aqui à gente.
Primeiro, ninguém percebeu que festa era aquela. Segundo, a torre havia de saber-se a altura certa, eu calculei trinta metros mas podiam ser quarenta e dois e isso impressionaria muito mais as pessoas, compreendes? Terceiro e mais importante, que foi feito da Marília?

- Marília foi encarregar-se das pessoas enquanto vocês, as mais fracas, se ocuparam das coisas. Disposições divinas.


(Marília ajudou outros passageiros a desembaraçarem-se dos cintos para se porem de pé, enquanto tentava chegar, no escuro, à porta do avião, que estava virado ao contrário, de rodas para o ar, só com uma asa e fora da pista. Foi há muito tempo. Felizmente sobreviveu quase toda a gente. E tanto me impressionou isto, que sonho com ela.)

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