a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/02/2015

Tripas dobradas em três

Se não estivesse a pagar contas na internet de casaco vestido, podia ir comprar um selo para te mandar a carta que não te escrevi à mão.

Mas estou a pagar contas na internet de casaco vestido. Fui apanhá-las dentro da caixa metálica encastrada na parede da entrada do prédio; abro a caixa com a chave mais pequena e com pouca vontade, porque já sei. 

Lá dentro, com as contas, todas em envelopes de janela com vista sobre o meu nome a encabeçar esta morada, não estará a resposta à carta que não fiz para ti. Meto a mão, retiro os envelopes e depois vejo, acamado neste leito frio e habitualmente escuro, um cartão de tamanho esquisito anunciando, em letras azuis e vermelhas, experiência em caixilharia de alumínio com orçamentos grátis. Subo as escadas enquanto o leio e me pergunto quem fará o arranjo gráfico destes cartões caseiros que não deito fora por serem assim. Já em casa, guardo-o na caixa de madeira junto dos que falam de serviços bons para as canalizações ou os que acalentam a esperança camuflada de virem a reparar estores a preços baixos. Ora eu não sei a esta data se noutra qualquer terei precisão de uma caixilharia de alumínio com orçamento grátis, pois não? Então pronto (não te rias).

Depois é os envelopes com janela. Abro-os por trás com cuidado, que o papel gosta de afinfar (afinfar?!) na pele dos meus dedos cavando-lhe um caminho estreitíssimo, golpada para ficar a doer vários dias, se bem que hoje não. De dentro, então, lhes retiro com dedos intactos as tripas dobradas em três, aliso-as, sento-me a pagar as contas de enfiada, não compro selo nenhum e foi aqui que começou.

Quando acabou, tirei o casaco. Ainda cheira ao teu abraço.


(foi por ter lido isto, que este post germinou e se veio meter aqui)

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