a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/06/2017

A Carta

Subimos juntas nas escadas rolantes do centro comercial. Ela já leva a carteira preparada na mão e encosta-se um pouco a mim, gosto tanto da minha mãe. É mais alta do que eu há muito tempo. Vejo-lhe, pelo canto do olho, a curva do pescoço que o rabo de cavalo revela e ponho-a no meu colo só um bocadinho, reduzindo-lhe o tamanho à escala de há quase vinte anos. Ficamos assim até o mecanismo rolante nos entregar ao piso superior e a obrigar a endireitar-se. Dirigimo-nos à caixa multibanco, ela mete o cartão de plástico na ranhura da máquina, digita o código. Eu fico um passo atrás ainda com ela ao colo, é só mais um bocadinho, só para relembrar o cheiro de bebé, os sons, o riso que lhe saía até a dormir.
- Gosto tanto de ver esta tirinha aqui a espreitar, mãe, esta que diz “esa”, olha – voltara-se para mim.
- O quê, filha? – regresso ao piso superior do centro comercial.
Do compartimento apertado da carteira aberta aguardando o retorno do cartão ainda ocupado a tratar de assuntos seus no terminal multibanco, puxa a carta de condução. Ao fazê-la deslizar, “esa” cresce para “Portuguesa” e depois para "República Portuguesa”. 
- Sinto-me tão crescida, mãe - declara, enquanto acaricia o documento, condómino acolhido no outono passado.
O terminal multibanco atrai-lhe de novo a atenção, a Carta acariciada volta para o lugar de onde saíra, fica o “esa” à janela e a minha filha devolve-me as costas, a curva do pescoço, a parte de trás das orelhas. Aproveito e torno a pô-la no colo. Só mais um bocadinho. 
Que aquele "esa” já a leva para longe de vez em quando.

14 comentários:

  1. Isto é ternura que contagia. Pegou-se-me à pele.

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  2. Cada vez mais para longe, Susana... Resta-nos ficar a vê-los ir, neste sentimento nostálgico, neste misto de passado e futuro.

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    1. Mas quando de vez em quando regressam e nos apresentam ainda uma ou outra coisa de bebé, de dúvida, de medo, uma ou outra coisa que se esquecem de esconder, é tão bom poder dar-lhes colo.
      :-)

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  3. é tão bonito o que escreves...

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  4. Um abraço maravilhoso entre o olhar, o coração e a razão.
    Outro para ti.

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  5. Foste envolvida no movimento "selinho Blog em bom", tens agora vinte e quatro horas para escolher um blog que gostasses de ser, explicando-nos porque é que aquele blog é mesmo um blog em bom e para desafiares mais cinco bloggers para este interessante desafio que pretende promover o convívio entre todos os bloggers, ou então um panda bebé morrerá e todos sabemos que os pandas são animais fofinhos que não merecem falecer só porque alguém não responde a um desafio

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  6. Tinha saudades de ler-te :-)

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  7. Que post bonito! Terno. E muito verdadeiramente universal em todas as mães e pais. Mas, urge dizer, senti no texto também a alegria de saber que se afasta mas é gente direita. E um orgulho por ter participado no processo. Porque participa sempre. Os pais são influência (oxalá benéfica) que a morte não extingue. E alguns conseguem mesmo a proeza de se continuarem em mais que uma geração. A Susana parece enquadrar no perfil.

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    1. Oh, bea, que elogio tão grande, muito obrigada.
      Bem, eu tento, pelo menos, enquadrar-me nesse perfil.
      Dar-lhes o que de melhor tenho e ensiná-las a buscar o que de melhor a vida tem.
      :-)
      Bom fim de semana, bea.

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