a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/09/2018

Post de oferta em andamento

O comboio está, parece-me, mais sujo. Que os comboios na Holanda são muito sujos, já sabemos. Mas hoje, este, está no top mais dos comboios sujos. Sento-me num banco único, sem lugar ao lado, para melhor gerir a minha pouca mas ainda assim bagagem em torno de mim não interferindo com espaço que pode vir a ser tomado por outra pessoa mais tarde ou mais cedo. Em princípio mais tarde. Surpreendentemente, o comboio vai quase vazio em termos de passageiros. Mas está um cheiro no ar. Um cheiro relacionado com casas de banho também no espectro do sujo. Mudo de lugar para um dos duplos uma vez que dos simples já não há, em busca de um cheiro melhor. Rearranjo a bagagem em torno de mim. Mas o cheiro continua. Deve estar a ser este emitido por qualquer coisa orgânica dentro da gaveta metálica sempre pronta a recolher o lixo dos passageiros, que há junto a cada fila de lugares. A gaveta mais próxima de mim vai um pouco aberta e deve levar uma fraldinha dentro. É uma boa hipótese, uma hipótese fácil de imaginar. Mudo de lugar pela segunda vez ainda na senda de um cheiro melhor e paramos em Amsterdam Zuid. A voz masculina no altifalante do comboio (será que ainda se pode atribuir sexo, perdão, género, a vozes que ouvimos em altifalantes dentro de comboios?), a voz masculina, arrisco lá então, anuncia a estação presente. E depois continua, conferindo certa urgência no seu troar, quase talvez cómica, uma urgência de professor avisando alunos distraídos, este não é o comboio pára-em-todas para Amersfoort, este é o comboio rápido para… e enuncia todas as estações do rápido em que estamos, eu e o cheiro a fraldinha (vamos assumir). No meu terceiro novo lugar a situação está, mesmo assim, mais otimista quanto ao cheiro e lá fora noto que faz sol. A nota do sol vem trazer um bocadinho de alívio ao contexto em que estamos de comboio sujo e mal-cheiroso, é uma cortesia da casa. O comboio, porém, ainda não arrancou todo-porco de Amsterdam Zuid. Está agora a ouvir a repetição da mensagem acima, nomeadamente com a urgência avisadora mais agudizada, oiçamos, este comboio não é o pára-em-todas para Amersfoort!, este comboio é o rápido para… e desfia de novo toda a estação vindoura, bem articulada a voz masculina (só mais esta vez), pausada, considerando que alunos aqui sentados, apesar de poucos, não estão suficientemente atentos. Eu penso que é então agora que vamos lá embora, já estou ansiando pelo duche que me espera, mas não. Agora vamos é ouvir a nova mensagem no altifalante que já está a sair, diz ela assim: “É a última vez que estou a avisar!”
Eu ri-me, esqueci-me da fraldinha na gaveta, do cheiro no ar, o comboio arrancou e ainda não parou.


Pára-em-todas leva acento em pára neste post. De oferta.

6 comentários:

  1. 'Ainda não parou'?!
    Qualquer dia ganho coragem e vou num comboio semdestino.

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    1. Quando escrevi "ainda não parou" era verdade. :-)
      Espero que esse teu comboio sem destino seja mais limpinho, Tétisq :-)

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  2. Comboios sujos na Holanda? Quem diria que não estranhariam os portugueses...
    ~CC~

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    1. Sim, muito sujos. Bem mais sujos que os de longo curso em Portugal.
      Bom fim-de-semana, CC.

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  3. não sei se alguém teve o prazer de partilhar os bancos de madeira das automotoras regionais 0300 (bem vermelhas e brancas) da linha do oeste, mas no meu ouvido ficou para sempre o "pára em todas as estações e apeadeiros"...

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    1. Não me lembro dessas automotoras de bancos de madeira, mas a expressão também me chegou por diferentes vias, il :-)
      Pelo menos foi por causa dela que me pus a pensar qual seria a diferença entre um "apeadeiro" e uma "estação"...

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