a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/06/2025

Mas como fazem os grilos?

O cair da noite, já um minuto mais cedo que ontem, não perturba o suave troar dos grilos. Troar, porque sei lá eu como designar este cri-cri incessante. Portanto troam eles, embora suavemente, e numa ondulação sonora muito conhecida.
O cair da noite, ainda um minuto mais tarde que amanhã, acompanha o sossegar dos melros, da toutinegra-de-barrete, da milheirinha europeia, do pisco-de-peito-ruivo, providenciando o arrefecimento noturno.
O estalar das vigas que sustentam o terraço, o telhado, a casa, e que ao calor da tarde incharam um bocadinho, atesta-o bem. Do outro lado do vale, um cão põe-se a ladrar. Na estrada nacional, ao fundo da encosta, a quietude cola-se enfim ao asfalto; o trânsito, ainda que esparso, cessou.
Aguardo a corça fêmea, adulta, que ontem, a esta hora, se empinava para chegar às delícias folhosas acima da sua cabeça, oferecidas por uma pequena árvore.
Enquanto isso, tomo um café descafeinado e algumas notas mentais. Alterada pelas chuvas bastas deste inverno tão longo, a fauna traz novidades. Gafanhotos surgem como veículos alados que passam elevados a semear sobressaltos no meu espírito. A lagartixa está mais alta, corre esquisita com a barriga bem afastada do chão.
No campo da flora, também há registos a fazer. Dezenas de baixas na ameixeira, de que pendem meia dúzia de míseros frutos com verrugas na pele dura, verde. Já a velha pereira oferece o oposto: serão centenas as peras que prometem continuar a deitar corpinho saudável verão fora? Tal como a videira, que se desmultiplica já, à grande e à francesa, como se costuma dizer, em farfalhos belos cachos. 
(entretanto recolho-me, não vá levar com um projétil voador em forma de gafanhoto gigante na cabeça)
Além disso, nem sinal da corça equilibrista.
Mas cá fica ela, capturada ontem, já com todas as patas em baixo.

13/06/2025

Então e novidades? *

Há anos que a Feira do Livro de Lisboa, um bocado mais a norte da família de jacarandás em flor, faz por ver-se livre do stock de 1984s, isto lê-se mil novecentos e oitenta e quatros, do George Orwell.
Com certeza é uma espécie de situação. Ainda por cima, esta obra de título ligeiramente matemático aparece numa pluralidade de edições e capas diferentes, portanto estás a tropeçar nela daqui a nada e a calçada portuguesa ou lisboeta (lesboeta) a ver.
Pela minha parte não li o livro, mas sei que é leitura muito apreciada no geral. 
Estou inclinada a desconfiar que nele se podem encontrar cenários escurecidos e de fado tristonho, a escavacar esperanças um tanto parvinhas que a gente possa ter. Creio que me ficou essa ideia quando li algo em tempos. 
No fundo não deixa de ser divertido. Fujo do livro a sete pés, porém com tal abundância de meios de locomoção vou e como já disse tropeço nele. 
Só que ainda não é desta. Talvez lá para 2029.

* se bem me lembro, este título é plagiado
**estou farta sabem de quê? de tanto sururu à volta da i.a. 

01/06/2025

Inteligências artificiais e algumas naturais

Dizer umas poesias ao aspirador robô quando ele passa por mim e receber informação sobre o seu nível de carga. O máximo. 

Descer a rampa da garagem e a viatura apitar toda agudizante ao ver a parede em frente. Inserir o modo de lavagem automática nos botões para o carrinho acalmar, parar com o estrilho (e não me furar os tímpanos). 

Saber perfeitamente que o café está prontinho quando o gorgolejar do líquido nos tubinhos da máquina deixou de se ouvir. Mesmo assim a cafeteira guincha de tantos em tantos segundos
(até lá ir com o dedo espetado ou dar em doida). 

Na fila de carros parados no semáforo em Lisboa, notar que um exibe na traseira metálica as palavras zero emissions. Continuar a caminhar com os nossos ricos ténis (de caminhar). Zero emissions isso também nós. Mas não andamos para aí a dizer. 

Muito lindo. E mais? 

Bem, lavei as janelas e os cortinados. Passei-os a ferro, pendurei-os. E depois notei que encolheram um bocado. Resultado de não os limpar a seco como manda a etiqueta (só que fica um pequeno balúrdio mantê-los tão em forma). 

A caminho da serra, na estação de serviço, tomei um café. Mas queria ter bebido um capuccino da Delta com demasiado açúcar, comido um chocolate Mars quase ao mesmo tempo e ainda comprado um tubo de Mentos dos brancos para me empaturrar nos quilómetros.

(Estou farta de trabalhar.) 

Portanto, fui cheirar as rosas com cuidado. Para não me entrar um inseto no nariz. 
Também decidi visitar as alfaces que estão crescidinhas. Fiz-lhes umas festas ao longo das folhas verdes (alface) e lá as deixei a deitarem mais corpinho todas frescas que nem as próprias.
(Ao lado, as ervinhas emergentes cheiram à rama do tomate, por isso também inspiro esse aroma de olhos abertos para ver claramente que não estou no Lidl.)

Isto se a gente quiser, com um bocado de sorte é sempre a melhorar.