a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/02/2015

Alvorada

Estamos os dois velhos, mas só a mim custa fazer o corredor do nosso apartamento, que é comprido. De manhã chego à cozinha cansada. Acendo a luz e o interruptor, que é antigo, faz o clique parcialmente oco dos interruptores antigos. Preparo-lhe o pequeno almoço, a chávena do café com leite fica cheia até à gota antes de entornar, sempre foi assim.

Não gosto de o ouvir sorver o leite mas consegui habituar-me. Os dias são todos iguais. Faço sopa de feijão encarnado e lombarda, batata e cenoura, nabo. Nunca me esqueço do sal e ele nunca diz se gosta. Comemos em silêncio.

Depois ele sai para ir à farmácia e traz o jornal do dia. Eu sento-me a ler o meu livro junto à janela que dá para o belo jardim do casino. Não fui capaz de ler Gunter Grass, desisti da sua ratazana.

Estou velha e custa-me percorrer o corredor do nosso apartamento, que é longo. Chego à cozinha, lenta, respiro com dificuldade. Acendo a luz e o clique do interruptor parece querer acordar a alvorada que ainda dorme. Os dias são iguais uns aos outros. Há muito tempo.

Preparo-lhe as torradas e ele, quando chega, liga a telefonia que está em cima do balcão. Ouvimos as notícias em silêncio. Não gosto de o ouvir sorver o leite e ponho de parte a posta de pescada para o almoço. Verifico que ele toma os comprimidos.

Depois sai para ir comprar laranjas à mercearia, as nossas netas vêm no domingo. Traz também pães de leite e amêndoas torradas, que vai pôr na caixa oval de plástico cor de laranja. Eu sento-me a dar um pontinho num pano da loiça; a alça de pendurar descoseu-se de um lado.

Estou velha e levo muito tempo a chegar à cozinha para lhe preparar o café da manhã. Às vezes lembro-me e ligo eu o rádio, não oiço as notícias, não penetram na minha tristeza opaca, igual todos os dias, mas as vozes dos locutores, que vêm de um mundo jovem, talvez feliz, e a camisola de lã vermelha que hoje vesti dão-me um nadinha de ânimo, convenço-me.

Dentro do envelope de algodão onde há décadas bordei as suas iniciais, J. E., está o guardanapo dele e eu junto-lhe as sacarinas com que vai adoçar o café com leite. Ponho a manteiga e a marmelada na mesa.

Depois de comer, ele sai para ir buscar um garrafão de água e chocolates, as nossas netas vêm no domingo.

Estou a arrumar a loiça quando a campainha toca. A campainha nunca toca. Não a esta hora. Não é domingo. Quem é? Abro a porta, são as minhas netas. Vêm sozinhas? O vosso pai? Elas estão na penumbra da escada, não lhes vejo os rostos mas fico feliz, fico sempre feliz quando elas vêm.

- O vosso pai?

Entrámos e em silêncio conduzimos-te ao cadeirão de cabedal, onde te sentaste.

- O avô ainda não chegou das compras – disseste. E o vosso pai? – insististe. Não era costume aparecermos sem ele.

Tínhamos combinado entre nós que era eu a falar. O nó na minha garganta estava duro e as lágrimas queriam continuar a correr, há horas que corriam. 

O vosso pai? 

Fiz um esforço imenso, os teus olhos outrora azuis tinham ficado pintados de cinzento pela tristeza que carregavas sempre, nunca soube donde vinha.  

-  Morreu, avó. 

-  Morreu?!

Passou um minutp ou o tempo de uma vida. Depois, levantaste-te em silêncio, desapareceste no longo corredor, nenhuma de nós te seguiu. Reapareceste alguns minutos depois. 

Tinhas trocado a camisola vermelha pela preta e perguntaste-nos como foi.

19 comentários:

  1. Nenhuma mãe deveria passar por isso. Nenhuma.

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  2. Pois não, Uva. É, de certeza, a pior das dores.

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  3. Doloroso, Susana, mas magnificamente escrito.

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    1. Doloroso, sim. (mas já passou muito tempo, estpero queisso seja claro)
      Muito obrigada, Maria. :-)

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    2. Nada bem escrita ficou a minha resposta ao teu comentário, Maria. Corrijo: "espero que isso seja claro".
      Boa semana.

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  4. Se há algum modo mágico ou apenas pragmático de extrair beleza da dor, conseguiste-o aqui, Susaninha querida. Simples e despretensiosamente lindo.

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    1. Muito obrigada, querida M D. Foi, efectivamente, dos momentos mais difíceis que vivi (mas foi há muito tempo). Acho que momentos destes nos obrigam, haja o que houver, a dar ainda mais valor à vida. Beijinhos (um para a Alice).

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  5. Estou num momento da minha vida em que as tuas palavras me tocaram ainda mais...

    Um beijo, embrulhado num abraço.

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    1. Um abraço, Maria, e um beijo. Espero que tudo fique bem depressa.

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