a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/03/2022

Teremos sempre os melros, o sol, os livros e o camião do lixo

Março começou de fininho, continuando o legado de fevereiro e, se não me engano, de janeiro também: uma primavera indelével, completamente desalinhada. 
No rádio anunciam, sobre um fundo de primeiros acordes e numa pausa em meio de notícias da guerra, algo relativo a Lou Reed. Fujo com o dedo para carregar no botão grande de imediato e desligo a emissão. Como prefiro os melros que se ouvem através da janela aberta!
Começo o dia com o café das sete e o sol, como é seu hábito diário, a nascer. Não pegando no livro de Saramago – Viagem a Portugal – que está demorado. As visitas a igrejas matrizes e outras, inseridas em lugares portugueses doridos pelo musgo e pedras antigas, gastos e húmidos, tristes e plenos de passado, detêm-me. Apesar da beleza no arranjo das palavras, sim. Antes li dois contos de Clarice Lispector no livrinho de capa azul editado pela Cotovia. Sou incapaz de lhe devorar os textos - é para que não se acabem. Preciso de ter alguma Clarice de reserva em casa, destinada a necessidades que possam surgir de luz, frescura de manhãs e doçura. Talvez por isso não tivesse ainda percebido que tenho três livros editados pela Cotovia a morar comigo. Tão poucos. Com certeza isto dirá algo desinteressante e inútil sobre a minha carreira de leitora.

Mas são horas de trabalhar. O camião do lixo já entrou na rua para a sua lavoura metálica, basculante e barulhenta. Bem hajam.

4 comentários:

  1. A essa lista acrescento um bom vinho e um bom filme lá para o serão. Que ainda é o café das 7. :)

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    1. Um bom vinho, pois, um filme inspirador, coisa tão cada vez mais rara de encontrar! também. Excelentes os teus acrescentos, Diogo, para o serão.
      Bom fim-de-semana! :-)

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  2. Das conversas serem assim como as cerejas... Ou levaste-me a pensar isto e agora olha. Para ti:

    Soube que a RTP Memória voltaria a dar, desde o inicio, as séries "Uma família às direitas" e "Quem sai aos seus". Combinei comigo mesma não falhar um episódio de nenhuma delas e assim tenho feito. Ambas, uma lufada de inteligência envolvida em sentido de humor. A primeira passa-se na década de setenta, a segunda na de oitenta. Abordam exactamente os mesmos temas e também os mesmos temas de hoje, embora, sinceramente, penso que são grandessíssimos chapadões de luva branca para a forma, muitas vezes, "excitadamente tola" da nossa época. O que também mostram? A História, está sempre a repetir-se, quase igual, o que muda são os recursos que a humanidade vai adquirindo para lidar com as mesmas situações.
    No caso destas duas séries, não enjoa esta repetição de nós a sermos nós constantemente. São brilhantes, são exemplos da humanidade no seu melhor, a criatividade ao serviço do humanismo. Ali, o cardápio todo. Lá está, entre tudo o resto (ou entre as "causas" todas, exactamente as mesmas de hoje), como atingir o equilíbrio economia/humanismo ou então a constante luta entre poder económico e humanismo, ganância/humanismo, o poder pelo poder/humanismo, eu sou mais (ou muito mais) que tu/humanismo.
    As conversas são assim como as cerejas e isso da História repetir-se quase igual... pois é, uma pessoa associa tanto Clarice Lispector ao Brasil, que nem imagina que nasceu na Ucrânia e ...
    Acho que o humanismo tem um problema de comunicação, sabes? Não sabe usar os mesmos meios, não sabe apresentar-se sexy. O humanismo precisa contratar uma boa agência de publicidade, que o faça parecer extremamente desejável, atraente, todo poderoso, encher bastante o olho, assim como quem sai do carro mais caro do mundo envergando a indumentária mais cara do mundo para jantar no restaurante mais caro do mundo e depois chegar a casa, claro, a mais cara do mundo, e tem de olhar assim com aquele olhar que parece estar sempre em modo desafio "quantos são? quantos são?"... (Não achas uma boa ideia, que te parece? ;-))
    As conversas são assim como as cerejas e também não contribuí para a manutenção da Cotovia e ora bolas para mim, mesmo, que poderia ter muito mais unhas para tocar guitarra.
    Teremos sempre os melros, o sol, os livros e o camião do lixo (bem hajam) e as histórias (e a História) que se repetem quase iguais e que tenhamos também cada vez mais unhas para que toquemos cada vez melhor guitarra.

    Ah! E, Susana, o humanismo fica tão sexy nos teus posts!

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    1. Minha doce Cláudia, mais um comentário a pulsar de conteúdo convidando às conversas que sempre ficam por existir, frente a umas cervejas e a uns tremoços numa esplanada em cima de uma praia. Mas enfim, não se pode ter tudo, pois não?
      Muito obrigada!
      Nem me tinha ainda lembrado que a Clarice Lispector nasceu na Ucrânia! Tão brasileira ela se tornou que até esquece esse seu início de vida...

      E que belíssima reflexão fazes com o humanismo. Acho que os paradoxos que apontas estarão na mente de muitos governantes, mais ou menos honestos, creio que na sua maioria honestos. Felizmente vivemos num país onde o desejo de paz impera e as mentes que por ela puxam também. Digo país mas até podia dizer Mundo. Só é deplorável que haja alguns, ainda que poucos, que queiram infernizar o planeta a troco de se sentirem como? Mais poderosos? É mais fácil compreender a física quântica do que estas mentes doentes.
      Que a paz vença e rápido, é o que todos desejamos.
      Querida Cláudia, bom fim-de-semana! :-)

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