a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/07/2025

Laranjina C

Acima das nossas cabeças, no bar que tem como antepassados a taberna e a mercearia separadas por uma porta de duas folhas de vai-vem, praticamente o único sobrevivente numa rua de casas desabitadas à luz elétrica dos candeeiros, acima das nossas cabeças, dizia, alinhadas num rebordo muito antigo, cobertas de pó, várias garrafas de bebidas que o foram há décadas. Entre elas, a garrafinha bojuda da Laranjina C.

Foi a minha irmã Ana, ali ao meu lado, a beber o mesmo Porto branco, que pôs em palavras a recordação do dia em que, juntas, tão pequenas, pela mão do nosso avô, visitámos a produção do refrigerante e eu me encantei toda por fábricas.

19/07/2025

Das manhãs é um titulozinho

Sou naturalmente das manhãs. 
As insónias saíram, o café pronto para se fazer ao dia, os pássaros despertando da lua, as ameixas frescas penduradas na árvore. 
Porque os cruzeiros aborrecidos, carregados de fugas (ao fisco), à vidinha, cruzam outros mares lisos, completamente pobres. Como se fossem noites. 
Eu sou das manhãs. 
Por exemplo, o autocarro começando a viagem um bocadinho vazio: bom dia ao mesmo tempo que alças a perna, que ouves a máquina fazer plim, que agarras depressa o varão.

Das noites pretas que não se apagam sou nada, a cabeça insuflada de ruídos, de ocos, de espessos, de grudentos. Nem um bom gato dali me salva. É de noite que morrerei, parece. Numa que ainda não se formou, não se agitou, não estendeu as suas garras podres todas cheias de escuro (não há pressa). 
Mas o corte fundo levado a cabo no meu dedo pela faca verde obtida nas compras do minipreço já sarou. 
Então vamos seguindo com esta escrita de tapinhas digitais no vidro dentro do autocarro, de uma manhã. (A marota a chocalhar-me o corpo para os lados nas curvas!) 

Quero que este verão fique assim para sempre, a inchar de manhãs. 

10/07/2025

Será ali um romantismo?

Tenho vindo a atravessar o Alasca. Povoam-me as escarpas de luz, o frio, a falta de noite, apesar de tudo. Não sabia que este seria um tão grande país (o 17° em vários critérios) se fosse independente. Um pouco já é: transpira segregação designando o Lower 48 como o conjunto dos estados lá mais a sul, não contando o Havai.
Mas pelas ranhuras de onde sai o ar condicionado vem um cheiro a condutas poluídas de micro-organismos. E então fecho o livro*. Lá fora estende-se Santarém na noite de verão. Vou um pouco enjoada de ler com tamanha sofreguidão nos agitanços do intercidades. Coimbra ficou para trás a chapinhar nas obras próprias de há imenso tempo. É certo que a estação promete belezas novas. Só que entretanto, nas casas de banho provisórias metidas em contentores - a cidadezinha a cuidar do povo enquanto se demora nas construções - os fechos das portas dos cubículos começam a ceder. (para o caso de interessar) 
E reflito na grande avenida, aquela que percorri ao cair do dia a caminho da estação. Oferece-nos os loendros do separador central nas suas três cores. O rosa-choque fraquinho na floração, o branco farfalhudo num raro esplendor, o rosa claro benzinho de saúde. 
E lá está a esplanada de duas mesas metálicas, de tampo quadrado, rodeadas de cadeiras do mesmo material e cor plúmbea. Em cima de cada mesa um dispensador de guardanapos de papel fino prontos a aconchegar os beiços dos inexistentes clientes, a limpar os seus dedos luzidios de manteiga nenhuma. A esplanada sempre vazia. Naturalmente: a meia dúzia de metros, alinham-se as bombas de gasolina e, do outro lado, a filazinha de bilhas de gás aguardando serventia. 
Pergunto-me, antes que o cidades me entregue no Oriente: mas quem se lembra de ajeitar uma esplanadazinha em território de estação de serviço, mesmo ao colo dos reservatórios de combustível, sobre um chão carregado de manchas de óleo e outras porcarias, hein? Quem? 

*Viagem ao sonho americano, da Isabel Lucas. Recomendo e é muito. 

01/07/2025

Cebola crua sobre Vem à quinta, que engraçado

Recolhi o marcador de entre as páginas de "Cebola crua com sal e broa" do Miguel Sousa Tavares, onde interrompera a leitura antes do jantar. Estendi o braço a norte e pousei-o, ao marcador, em cima de um dos livros de poemas da Filipa Leal, moradores na minha mesa de cabeceira para alguma necessidade urgente que me assalte ao deitar. Ou pela manhã cedo. 
Esta cena - o marcador do "Cebola crua" sobre o "Vem à quinta-feira" - atraiu o canto do meu olho. Detive-me então uns instantes. A tira de cartolina acabada de ali pousar, exibindo um troço da imagem da capa do respetivo livro em tons de azul, estende-se sobre toda a altura do de poesia sem protuberar além dos seus limites nem mesmo um nadinha. Mas não só, também as suas cores comungam numa total harmonia com o espectro de aguarelas de céu e mar que ornamenta a capa do "Vem à quinta". Sério. O canto do meu olho não foi atraído em vão: como se estes dois autores, tão distintos na essência, se entendessem numa mesma linguagem, numa paz ali toda interior. 
Suponho que a Filipa Leal reconhecerá sem hesitar a existência do Miguel Sousa Tavares, quem sabe leu "Equador" (toda a gente leu "Equador") e acredito que o jornalista também conhecerá o nome da poeta, nascido como é de uma. Mas, pergunto aqui aos meus botões, que sentimentos nutrirão um pelo outro. Hum? 
Se se respeitam, se acham que o outro sei lá o quê, se não estão para aí virados ou se pelo contrário até muito.
E, ainda, já que aqui estamos, se algum dia se cruzaram, se apertaram as mãos, deram dois beijinhos nas faces, ou se terão evitado.  
Não sabemos: só eles o poderão dizer. 
O que talvez nenhum dos nossos protagonistas saiba, mas nós sim, é que a mesma pessoa pode ler ambos com sofreguidão idêntica. Ah, pois. Porém vejamos a estranheza: com um deles a pessoa pouco ou nada se identifica, e com o outro, caramba, com o outro sente-se em casa.

(A vidinha faz-nos destas e depois o que se há de fazer, depois a gente alcança o dispositivo inteligente e, ao som dos grilos da noite de verão além da janela aberta, enquanto o termómetro desce devagar dos trinta graus, e pouco antes de se deitar a dormir, a gente vai e escreve um post chato como as casas como este.)