a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/02/2015

Canapé solitário

Depois do jantar, adormeci com o Dostoievski no colo. O Idiota. Não que não esteja a apreciar a leitura, estou até muito - escrita cem anos antes de eu nascer, é obra sobreviver assim - mas o dia foi longo, cheio de afazeres.

De cima das suas noventa e três primaveras, Anton descascara as batatas para o jantar, limpara a loiça que eu lavei e fizera o café. A sua recente condição de viúvo chama muito o telefone, mas foi o estrondear da campainha que me acordou. É a vizinha muito alta que passeia sempre o cão ao colo. Vem, sem o cão, apresentar as condolências. Ficará só um quarto de hora, como combinado quando a encontrámos à tarde no elevador, para não o cansar. Os holandeses não tomam a peito que lhes sejam limitadas as visitas, ou mesmo negadas, aceitam e colaboram genuinamente. Mesmo assim ofereci-lhe uma bebida, oferece-se sempre uma bebida, este é um povo de costumes fixos e organização extrema. A vizinha começa, depois de recusar a bebida delicadamente, a fazer a despesa da conversa, que não há tempo a perder, despesa que não sou capaz de pagar, não na mesma moeda, do que ela diz não percebo mais que algumas frases soltas. Deixo-me, então, escorregar para dentro de mim, mas antes de mergulhar no meu mar de silêncio interior, Anton recorda à vizinha a minha nacionalidade. 

Ao ouvir isto - ze is portugese - sinto aquele salto no coração que não tenho a certeza de se chamar orgulho ou se é saudade, talvez tenha dos dois, que resulta nesta vontade urgente de estabelecer ligação contigo, vou-te contar.

Tão extrema é a organização deste povo, queres ver, nas festas, por exemplo, oferecem-se as quantidades que dão conta certa com o número de convidados. Não se produzem desperdícios, mas eu naquela altura ainda não sabia.

Comemoravam-se os trinta anos de casamento dos donos da casa. Organizou-se uma espécie de ceia, havia muita gente. Primeiro as bebidas à chegada, música a tocar, as segundas rodadas, terceiras, os copos parece que nunca estão vazios muito tempo e, depois de muito se beber, declarou a dona da casa que estava na altura de se comer. Toda a gente se levantou das cadeiras espalhadas aqui e ali, se aproximou prontamente da mesa e a rodeou. Havia sanduíches triangulares com recheio apetecível e côdeas aparadas, um bolo fatiado e canapés feitos com pedacinhos de peixe nem sempre cozinhado, azeitonas, tirinhas de pimento, queijo, anchovas, muita cor, lá isso havia, os meus olhos comiam e os dos outros provavelmente também.

- São dois canapés por pessoa, duas sandes e uma fatia de bolo, podem começar - a dona da casa ditou as regras e eu, divertida, pensei que era a brincar. 

Entremeadas com as conversas à esquerda e à direita, as sandes não foi difícil tratar das duas que me competiam, que boas eram, e que faço eu, que fazes tu, onde estudaste, onde trabalhas, na aparelhagem lembro-me de ter ouvido fado, fado?!, que boa música têm vocês, aqui na Holanda gosta-se de fado, a fatia de bolo, não sendo grande, também a comi bem, e o Algarve é maravilhoso no verão, as praias, a água quente, o peixe fresco tão barato, queremos voltar, lá cordiais são os holandeses, e quanto aos canapés é que me fiquei pelo primeiro, não me tendo agradado este ao paladar não me lancei ao segundo, tempo de fechar a loja, como se costuma dizer.

No fim dos comes, sobram as conversas, que rolam bem entre todos, a mesa exibe os pratos das sandes vazios, no do bolo vestígios, fatias nenhuma, os pratos dos canapés idem, não fora um ter ainda, orgulhosamente intacto, aquele que eu não comi.

- Quem não comeu os dois canapés?

Fez-se silêncio para que se pudesse ouvir a voz faltosa. Corei e acusei-me. A dona da casa, então, que é preciso despachar isto e lavar a loiça, já são horas, pega no canapé solitário e vira-se para mim.

- Abre a boca!


Ontem, de dentro do carro em andamento, fotografei a neve que caía lá fora. Esta coisa tão linda meteu-se-me na lente assim, toda direitinha. 

Ede, Países Baixos

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