Todas as manhãs ela entra no autocarro, na mesma paragem. Todas não, há aquelas em que a vejo da janela do meu lugar a correr rua abaixo, não chega a tempo.
Deve ter uns 15, 16 anos. Tem o cabelo escuro, encaracolado e comprido, dos mais bonitos e brilhantes que já vi. Reparei nela por causa do cabelo.
Às vezes traz na mão um copo de plástico fechado, com café. Enche o autocarro com o seu aroma e é a única que não dá por isso.
A mim apetece-me dizer-lhe bom dia. Queria agradecer-lhe o cabelo sedoso, o café aromático.
Nunca se sentou ao meu lado. E eu nunca lhe disse bom dia.
Traz no olhar uma doçura quente, luzidia como azeitonas pretas. É um olhar sem fim, sem fundo. Mais maduro que a sua idade.
Ultimamente parece triste, inquieta.
Se ela chegasse mais cedo e ficasse na paragem a ouvir os cantos matinais e primaveris dos pássaros que vivem nas árvores do bairro, já teria experimentado a paz que as primeiras notas da manhã oferecem.
Assim que se senta no autocarro, que àquela hora não vai cheio, tira um livro da mochila. Um livro da escola.
Lê mais vezes o de filosofia. Quando o faz, vai serena, concentrada. Lê e bebe o café distraidamente. De vez em quando, levanta a cabeça e fixa o olhar profundo no infinito que a janela lhe oferece. Contempla a vida a correr lá fora, penso eu. Mas não lhe consigo ler os pensamentos.
Ontem abriu o livro de biologia. Não levantou a cabeça, enquanto leu. Virava as folhas nervosamente. Para a frente, às vezes para trás. Ao fazê-lo, para trás, mexe os lábios, está a ler mentalmente, repetidamente. Quando será o teste?
A inquietação que transporta na mochila - ou será no copo de café? - está, esta semana, mais evidente. Mas ela é suficientemente nova para não saber que esse passageiro indesejável vai de boleia.
Hoje, quando apanhou o autocarro, vinha mais ofegante. Trazia o café no copo de plástico. Encheu o autocarro, não reparou. Nós reparámos.
Sentou-se num lugar à janela mas não abriu a mochila. Acho que o livro de filosofia não estava lá.
Eu aguardava o momento de estudo, que tardava. O copo de plástico estava esquecido na sua mão. Tremia.
E eis que desata a chorar. Chorou baixinho durante todo o caminho até à paragem em que costuma sair.
Não, o livro de filosofia não estava lá.
Saiu.
Fiquei a vê-la do meu lugar. Ela, parada no passeio, os ombros a tremer, o lenço no nariz, a mochila - vazia? - às costas. Uma senhora que passou aproximou-se e falou-lhe. Ela abanou a cabeça e afastou-se. O autocarro seguiu e não vi mais.
Podia ter ficado desiludida por eu não a ter consolado no seu pranto. Podia, se soubesse que eu existo. Podia, se soubesse que eu lhe conheço os livros.
Podia, se soubesse que a adoptei como filha secreta, uma filha cujo nome não sei.
Fiquei feliz por ela ter chorado. Libertou-se da inquietação que trazia na mochila, no copo de café, presa nos seus caracóis longos. Libertou-se? É melhor confirmar, amanhã.
Pode ser que se sente ao meu lado. E eu vou dizer-lhe bom dia. E, se ela deixar, pergunto-lhe o nome.
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