a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/06/2014

Sono profundo

Lembro-me tão bem do carro do Rui.

Não tinha chave. Para entrar, o Rui colava a palma da mão na janela do condutor, fazia um vácuo estudado, experiente, bastante para o vidro se sentir agarrado e depois descia o conjunto até conseguir abrir a janela os centímetros suficientes para o braço entrar e destrancar a porta. Uma vez lá dentro, ao volante, o Rui unia dois fios que penduravam da zona onde os carros menos velhos costumavam ter a fechadura que permitia a ignição. Unia os fios enquanto acelerava e assim ligava o motor. O Fiat 125 começava então a vibrar e a roncar.

O Rui era dos poucos colegas lá da faculdade que já tinha carro. Um dia, eu ia sentada atrás, e vi cinco cogumelos esbranquiçados a despontar no tapete, junto dos meus pés.

- Rui, o teu carro tem cogumelos.

- Quantos são? Têm nascido muitos, com esta chuva. Nascem como cogumelos! - o Rui achava graça a isto, ria-se, e eu tive muito cuidado com os pés para não pisar a cultura.

Sempre que havia um semáforo no percurso e a luz acesa calhava ser a vermelha, o Rui parava e o carro desligava-se.

Já todos sabíamos que o momento que se seguiria ao cair do verde, cair é como quem diz, podia tornar-se barulhento se havia carros atrás.

Verde.

União dos fios, aceleradelas, o Rui com calma, buzinadela lá atrás, aceleradela aqui da frente, os fios, com jeitinho, muita calma, nós a olhar, a impaciência atrás de nós a subir, mais um bocadinho, já está. O Fiat acorda do sono profundo, ronca, agita-se, leva-nos a todos. E aos cogumelos.

- É uma pena o carro não ter chave - disse um dia o Rui, satisfeito. O Rui está sempre satisfeito.

- Pois, se tivesse chave, arrancavas mais depressa - concluiu alguém, acho que foi o Fernando.

- Pois arrancava, mas antes - explica o Rui - ia lá atrás ao condutor impaciente e entregava-lhe a chave.

- Entregavas-lhe a chave?! - agora devo ter sido eu.

- Entregava-lhe a chave e dizia-lhe: o senhor vá ali pôr o meu carro a trabalhar se faz favor, que eu fico aqui no seu a buzinar.

(só não tenho a certeza quanto aos cogumelos serem cinco, talvez fossem sete)

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