Normalmente não preciso. Mas de vez em quando, talvez me leve distraída o dia ou sou atravessada por neutrinos dos maus, afogo-me. É um buraco.
Chega-se a mim, e eu, donde vieste buraco?, interrompe-me o estado completo, passo ao incompleto, sou engolida, é isto, olha, precisava mesmo agora que me dissesses assim, com cara
séria, olhos nos meus, os teus cheios de luz, eu acho que isso é luz mas um
poeta é que diria o que é, não te preocupes.
- Não te preocupes.
E eu obedecia enquanto bebia um pedaço dessa tua luz
que se calhar é chocolate, também bebo chocolate, mas um poeta é que sabe. Inspirava fundo, então, voltava a
completar-me e depois tu podias ir embora outra vez.
No interstício – aos séculos que não escrevia esta palavra! –
no interstício de tempo que medeia, fico-me afogada no buraco que me engoliu e enfio nos ouvidos uma música das que, com um jogo de roldanas bem
orientado, me puxará a alma de cimento para cima, ali à altura da bandeira lusa
do parque, aquela que acena aos satélites, bem gostava de saber a área de pano
que ali está e até havia de sorrir, mesmo que em tons de amarelo.
Lembro-me da miúda que se enganou na coreografia de sábado,
no espectáculo de natal que fizemos. Chorou o resto do tempo, dançou em lágrimas, soluçou
até depois de tudo acabar e nos enfiarmos na chuva da tarde.
- Que idade tens, querida?
- Onze – arrancou ao pranto.
- Não te preocupes – passei-lhe a mão pelo cabelo ainda montado em carrapito - só não se engana quem não faz nada. Não viste que eu também me
enganei?
Levou abraços de cada uma de nós,
consolo foi o melhor que pudemos, melhor, mas ineficaz se mostrou, ela não se
perdoou o engano e o tempo não se rebobina, ou tu isso consegues?
- Não te preocupes – precisava de lhe passar a mão outra vez
pelo cabelo, mesmo que o carrapito já lá não esteja, nem a fitinha de cetim
rosa, e assim enchia este buraco, saíamos as duas dele e a chuva da tarde continuaria a cair.
Mas agora, engolida assim, longe da tua luz que deve ser chocolate quente, a música que meti nos ouvidos não funciona, estragou-se com os neutrinos maus, a minha alma de cimento afunda-se e eu precisava.
- Não te preocupes.
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