Tem dias em que me farto de mim. Noites não, nessas ponho-me
a dormir e depois esqueço. Mas dias. Farto-me da minha voz e os espelhos, ai jesus, evito o que posso.
No salão onde se desenrolam muito bem as aulas de dança, há uma parede de espelhos que contribui, evidentemente, para
este aspecto. É cabisbaixa que me ponho então, fartinha que estou, uma vez que
no chão não os há.
- Susana, tens de olhar para o público e não para o chão,
assim, estás a ver – oiço a voz de comando da professora.
Olhar para o público já se vê que é brincadeira, pois
público não há mais que eu própria ali reflectida e as outras colegas, não
muitas mas boas, pelo menos eu acho que tirando uma elas são boas.
Era sem espelhos e haviam de ver umas determinadas coisas como deve ser. Mas as modas são as modas, estas trouxeram espelhos para os
ginásios, e eu já basta não ter um aifoune,
os aifounes são muito giros mas põem
distância entre as pessoas, põem põem, e eu do que gosto é
de pessoas.
Quando estou no aeroporto à espera de alguém, lembrei-me
agora, mesmo ali à boca das chegadas, observo as gentes que descem a rampa
pouco inclinada mas ainda assim rampa (aborrece-me não saber de onde vêm e sou
capaz um dia de perguntar, olhe, se faz favor, era para saber de onde vem) e
gosto daquilo, suspeito que fico com uma cara qualquer, felizmente espelhos não
os há, só o anúncio do Martini que cobre todo este desembocar das chegadas, vai
de uma ponta à outra do aeroporto, estou desconfiada que praticamente entra no metropolitano, coisa mesmo à grande sim senhor e que
renovaram recentemente, o outro estava ali ainda eu não me fartava de nada, vamos
lá ver quantos fica agora este e o parágrafo está tão grande, fecha-se já.
Observo então os abraços, os sorrisos, os abraços, os
sorrisos (dizem que as repetições trazem tranquilidade e eu tomo-as agora para
ver se me descanso de mim), observo um grande grupo que enche toda a largura do
fim da boca das chegadas, malas a ajudar, caros a escorregar, não era para
rimar, é favor desculpar, são muitos e apresentam pessoas a pessoas, beijinhos
beijinhos, muito prazer, igualmente, apertos de mão, como está, sorrisos e depois
vem uma lá atrás mal disposta, resmunga que estão a ocupar e diz olhe desculpe,
mas devia dizer olhe deixe passar, esta não tem cá ninguém, nem abraços nem
beijinhos, sopra o ar, revira os olhos.
E eu ponho os meus nas costas dela, vejo-a ir para a fila
dos táxis, coitada vai para a fila dos táxis, e quando devolvo a cara à observação
das pessoas aparece o Manuel, olha está mais gordinho, mas não digo,
ele vem a sorrir, vens de onde Manuel, de Bruxelas, ah de Bruxelas, diz-me que
eu mais nova, mais nova eu mas farta farta, estive com as tuas filhas no outro dia, sabias, sabia, estão
lindas, pois estão, lindas lindas.
E eu com o pensamento nas lindas que são mesmo mesmo as minhas
filhas, rio-me com o Manuel e do meu riso por acaso ainda não me
fartei.
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