A estação de comboios de
São Bento põe-se a jeito para muitas oculares de registo
fotográfico de todos os tipos; desperta um passado comum que nos abraça como se
faz aos filhos e acaricia-nos, até, um ou outro sonho representado num dos painéis de azulejos que contam histórias só nossas. Foi este o
aperitivo para um dia de cruzeiro no Douro. Apanhámos aqui o comboio com destino à
Régua, percurso que inclui uma parte a prometer ser linda: a composição desliza como se
quisesse desenhar a margem do rio. Ora qualquer pessoa com isto se anima,
sem esforço, da expectativa de ver o Douro de comboio antes de o ver por dentro,
no seu curso líquido, quando lhe escorrermos na superfície da artéria, mais
tarde. Vê-se bem que promete, a viagem de comboio promete. Mesmo que o joão
pestana não apanhe a mesma carruagem ou, apanhando, não se sente ao nosso colo
e a gente se mantenha de olho bem aberto, não nos deixam descortinar a paisagem nem constatar-lhe o selo de beleza, a promessa ficamos sem saber se é cumprida. Esta
viagem de comboio pela margem do Douro recomendo-a apenas, embora vivamente, às
pessoas que gostarem muito de observar durante duas horas todos os detalhes da parte do
graffiti que cobre a sua janela, visto do seu avesso. Há-os de todas
as cores, os graffiti, é uma questão de escolher o lugar junto à tonalidade que
mais lhe agradar. O meu é preto como mostra a figura e agora podemos inclinar a cabeça e dizer em coro, enternecidos, oh tão fofinho ou oh que
lindo, se tivermos vontade. Não é o meu caso, que antes queria ter apreciado a paisagem lá fora a espraiar-se
sob a luminosidade da manhã fresca de verão, de forma que saí do comboio
duas horas mais velha, atordoada, irritada e triste. O Douro terá feito algum
mal à CP, pergunto-me, a CP não gosta do Douro, respondo-me, gosta é, e está visto que muito,
de graffiti nos seus comboios deste abençoado troço, ou será das janelas, não gosta
de janelas com a função a que se destinam as janelas, por isso circula assim, com elas tapadas de muitas cores, vestiram-se os
comboios para uma festa, outra, que não esta.
Mas ainda há o barco, o
cruzeiro, o Douro por dentro. A partir do apeadeiro da Régua, caminhamos em
manada atrás da menina que empunha alto mas não muito a bandeira do operador
turístico, não nos dispersemos, que somos várias manadas de vários operadores
turísticos, todos devolvidos pelo mesmo comboio, e todos por ali abaixo
assaltados por pilhas de chapéus a cinco euros, brandidos nas mãos de
vendedores atacantes, a cada cinco passos cinco euros, chapéus a cinco euros,
mas bem, vamos em direcção às maravilhas do nosso Douro tão lindo, desviamo-nos
dos chapéus sem com eles colidir, isso conseguimos, o Douro a vislumbrar-se lá
em baixo, até que enfim, e o nosso é o último barco do cais.
Dentro, as mesas
dispõem-se muito juntas, conto sete mesas vezes sete lugares
dá quarenta e nove passageiros, minha senhora dá licença, chego a minha cadeira
à frente para a senhora de trás se sentar, costas com costas comigo, e ela nem
é gorda, isto é apertado sorrimos de lado uma à outra, desculpe, se faz favor,
olhe a sua mala, caiu, obrigada.
Neste momento ocorre-me que o cruzeiro tem a duração de seis horas e noto que deste lugar mal vejo o rio
lá fora, felizmente as janelas do barco são das boas, estão nuas, mesmo assim
tive um impulso de fugir, em vez disso sorri e tentei meter conversa com os
cinco desconhecidos da nossa mesa (o melhor do mundo são as pessoas, lembrei-me).
É com o barco já em andamento e o primeiro porto meio bebido, um porto branco, que nos é servido o próximo entretenimento. Que é isto, parecem obras, mas ai não, não são obras, é uma
espécie de música, intensa barulheira distorcida que jorra dos altifalantes dispostos em todos os
cantos dentro e fora do barco (dez minutos depois, quando consigo desenfiar-me do meu lugar fazendo levantar oito pessoas de duas mesas para eu poder passar, fui verificar que fora também, no deck também há altifalantes), música terrível, aos berros para superar o ruído do motor do barco, tzztum tzztum a bundjinha, há música brasileira tão boa e eles nisto, seis horas assim não, tzztum tzztum a bundjinha, o resto não percebo, mas estás aqui é para ver o rio, olha para o rio, já olhaste, já
olhei, é tão lindo, pois é.
Antes mesmo de o almoço ser servido, já me tinham assaltado pensamentos encorajadores do tipo tu sabes nadar e a água não está fria, a margem é já ali, pensamentos de querer ir ver o rio mais de dentro, sentir-lhe o pulsar do sangue, misturar-me com ele, fazer ali imensa poesia fluida, mas antes de me deixar encorajar tanto, tentámos trilhar o caminho mais fácil: implorámos em três rondas de ataque (Erik e eu) para desligarem a música. À terceira desligaram, respirei de alívio, agradeci do coração, e depois olhei em volta: ninguém pareceu importar-se, nem mesmo os brasileiros presentes (havia também espanhóis, ingleses, holandeses, canadianos e portugueses mas poucos).
A duas horas e meia do fim do passeio, já depois de termos descido trinta e cinco metros na eclusa que já foi a maior da Europa (impressionante esta eclusa, também tem foto onde se vê um barco muito maior, que se meteu lá dentro connosco), o motor do nosso barco calou-se. Começámos a deslizar na água de uma forma que se designa normalmente por à deriva, embatemos num objecto verde que sinaliza a zona navegável e os rapazes da tripulação a correr ao deck e a esbracejar para um barquito de borracha que ia a passar, pode levar-nos até à margem? o motor do barco avariou. O barquito de borracha tentou, sem sucesso, a potência não chegou para tanto, e foi a lancha que passou veloz (os rapazes a esbracejar outra vez), que nos arrastou para atracar num local apropriado onde ficámos à espera, durante uma hora, do autocarro que nos levou de regresso ao Porto. E, como não há duas sem três, também mostro o barco protagonista da aventura, no qual nesta última hora de espera, atracado, se ouviu então música portuguesa do tipo pimba, tira o carro e toma lá o bacalhau, essas coisas, que não é tão má como a outra, porque não tem o tzztum tzztum.
(Douro, querido rio, voltaremos para te visitar. Sem comboios sujos, sem barcos barulhentos, sem lixo. Assim havemos de conseguir ver-te. A ti.)
PS: No dia seguinte, escrevi à CP - Comboios de Portugal a manifestar a minha indignação pelo estado dos comboios, todos os que vi no Douro estavam assim. Já passaram duas semanas e ainda não obtive resposta.
A estação de S. Bento é a mais bonita que conheço. O Douro é uma perdição. Ou não fosse eu uma duriense de gema.
ResponderEliminarEssa também é a estação mais bonita que conheço e o Douro será uma perdição para mim, talvez, se da próxima o conseguir realmente visitar.
EliminarUm abraço lisboeta a essa duriense de gema. :-)
Obrigada Susana, pela denúncia de tanto inútil folclore. É preciso ter coragem para dizer que não presta, que não vale, que é chinesice, bijuteria para entreter turistas apressados. Felizmente, o Douro é outra coisa, é muito mais. Mas é preciso procurar.
ResponderEliminarAbraço
Folclore! Bolas, porque não me lembrei dessa palavra maravilhosa que tinha ficado tão bem ali no post?! Inútil, de facto. Eu, que não sou turista apressada, senti-me mesmo em excursão de carneirada, até tive vergonha. É uma vergonha, de facto.
EliminarAgora irei procurar, sim, mas de carro. :-)
Outro abraço, querida MP.
O Douro é mesmo uma perdição, Susana, é de cortar a respiração. Já fiz esse percurso mais que uma vez, mas de carro e fiquei por lá uns dias, para poder ver o máximo possível. Mas este ano, desassossegaram-me para ir fazer o tal cruzeiro, ora pois claro que sim, vamos lá ver como é, isso nunca fiz. Então, para o próximo mês, lá vou eu... e agora fiquei tão empolgada, mal posso esperar...:)
ResponderEliminarBeijinhos, Susana.
É mesmo o que vou fazer, Cláudia, de carro. Quero ter a respiração cortada pelo Douro, que o Tejo já ma cortou muitas vezes, o safado. E o Mondego também é capaz de fazer o mesmo. :-)
EliminarMas olha, o cruzeiro... sei não. Leva tampões para os ouvidos, podem dar jeito. :-)
Beijinhos, Cláudia, e boa sorte (depois podias abrir um blogue para contar isso, sim?)
Ainda não fiz esse passeio mas está na minha lista! :)
ResponderEliminarO Douro é tão bonito.
Beijos Susana
Querida Just, desejo-te boa sorte (depois contas?). Se não adorares música doida, leva tampões para os ouvidos.
EliminarBeijos de volta. :-)
Há uns anos fiz essa viagem, mas não integrada em grupo organizado.
ResponderEliminarHá vários operadores e, presumo, com ofertas e qualidade distintas. Na altura, tive música ao vivo boa e o passeio foi agradável.
De facto, em várias zonas há comboios todos pintalgados. Fico aborrecida quando apanho disso na linha de Cascais porque não posso ver o mar.
Se não foi uma reclamação, a empresa, em termos legais, não ter obrigação de responder. Embora a ética "mande" agir de outra forma. Digo isto porque às vezes somos demasiado brandos em expor os problemas e não pedimos o livro de reclamações.
Beijo, Susana.
Sim, é verdade, há vários operadores. Mas eu não fui em grupo organizado, fui, pronto. :-) E por acaso acabo de chegar de Carcavelos e reparei que sim, que os comboios da linha de Cascais andam na mesma...
EliminarO que eu fiz com a CP acho que foi uma reclamação, em local próprio no site da empresa.
Beijo de volta, Isabel, e obrigada pelo teu comentário. :-)
Quase nos cruzámos como já tínhamos constatado e não me aconteceram alguns desses percalços. Aconteceram outros. Gostei mas não repetia. É algo para se fazer uma vez e basta. Mas agora constato através dos teus olhos e do teu sentir que fiz a viagem completamente alheia a tudo isso.
ResponderEliminar(nem sei se é bom ou mau!)
;)
Eu acho que é bom, Maria, se fizeste a viagem alheia ao que é dispensável, é porque conseguiste apreciar bem.
EliminarPois foi, quase nos cruzámos. :-)
Quase nos cruzámos como já tínhamos constatado e não me aconteceram alguns desses percalços. Aconteceram outros. Gostei mas não repetia. É algo para se fazer uma vez e basta. Mas agora constato através dos teus olhos e do teu sentir que fiz a viagem completamente alheia a tudo isso.
ResponderEliminar(nem sei se é bom ou mau!)
;)