Na primeira noite depois de ter saído de casa com as minhas filhas
bem pequenas e ido viver com elas para um também pequeno apartamento no alto de
um prédio, ouvi a maior discussão a que alguma vez assisti. Eu sentia-me
extremamente feliz, é preciso notar. Do outro lado da parede onde estava a
minha cama encostada, essa nova parede, alugada, eles discutiam com ameaças de
morte, eu vou e mato-te, eu também, eu com uma faca, eu com duas. A minha
felicidade egoísta, recém-conquistada, não estava sendo perturbada, mas fiquei
alerta. Ouvia coisas a cair, os gritos de conteúdo já referido de ambas as
partes, dela e dele. Era evidente que não havia um vítima e outro agressor, eram
ambos vítimas. Quando o estrondo quase abanou a parede comum – uma cadeira
talvez, atirada com força – eu preparei-me para chamar a polícia, fazer alguma
coisa. Mas não fiz. O barulho cessou logo a seguir e eu depressa adormeci.
Hoje, passadas quase duas décadas, num prédio erguido alguns
quilómetros mais a norte, ouvi a segunda maior discussão. Aliás, ainda estou a
ouvir. Segunda porque ainda não voaram cadeiras, nem coisas caíram (para além de
lágrimas, isso sim).
(é que lembrei-me, ver título - que vê-se bem)
Notícia de última hora: já se ouve rir e até cantar. O cão ladrar. Melhor, quer isto dizer.
as paredes não param a vida...
ResponderEliminarapenas a filtram.
Eliminar(Quero muito que fiques a saber, embora tenha ficado aqui um tempo, feita parva, sem dizer-te :-). Sinto uma profunda admiração por isto: "Na primeira noite depois de ter saído de casa com as minhas filhas bem pequenas...".
ResponderEliminarA liberdade, toda a gente sabe, também tem um preço, e, muitas vezes, precisa de muita, muita coragem. Talvez seja muito duro o que vou dizer, ou, talvez mesmo, muito injusto, mas, muitas vezes, o oposto de liberdade, parece-me ser cobardia. Tenho sido, ao longo da vida, fiel depositária de alguns segredos, considero um privilégio escolherem-me para, e, muitas vezes, ser amiga é apenas escutar, é, sem dúvida nenhuma, não julgar, e não julgo, nunca julgo, cada um sabe de si, mas, depois, a minha liberdade de chegar a conclusões, que podem ser precipitadas, também acontece. A cobardia abrange vários medos, a insegurança é um deles. Mas, depois, lá está, optar pela segurança, também é, muitas vezes, uma escolha livre...Mas, pronto, o que quero reforçar, o que queria mesmo muito que ficasses a saber, é que sinto uma profunda admiração por...E, caso penses que é melhor assim, por favor, exerce a tua liberdade de deixar isto sem resposta)
Minha querida Cláudia, muito obrigada por este comentário.
EliminarTeria sido preciso ainda mais coragem para tomar o outro caminho.
É crime público, mesmo que se passe entre quatro paredes.
ResponderEliminar~CC~
Sim. Crime e uma grande tristeza.
EliminarBom feriado, querida CC.