a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/10/2013

Fada de espuma

Lembro-me muito bem do teu sótão.

Palco das histórias mágicas que me contavas, com fadas e princesas, o teu sótão foi o ninho onde nasceram os meus sonhos.

O soalho era feito de tábuas muito compridas entre as quais desapareciam os alfinetes que te caíam dos dedos quando experimentavas em mim os vestidos de verão que se faziam com as tuas mãos de anjo. Está quieta, dizias.

Eu queria os vestidos compridos até aos pés e tu dizias que não, isso não. Mas, depois da prova, eu ia ao cesto dos restos de tecido e escolhia um bem grande. Enrolava-o à cintura e pedia-te os alfinetes, prende aqui, prendes? Prendias. E deixavas-me ser a princesa das tuas histórias.

Lembro-me de te sentares à janela, aberta para os telhados de Lisboa. Recortava com a tesoura, devagar e desajeitadamente, os restos dos panos que sobravam das tuas costuras, para eu fazer as minhas. E, ao mesmo tempo, observava os pássaros que esvoaçavam perto de nós.

- Se eu cair da janela e escorregar no telhado, tu vais buscar-me?
- Não, querida, os pássaros apanham-te e trazem-te para casa.

E cantavas outra vez aquela canção que eu te pedia, a da fada de espuma, vá lá, só mais uma.


Muito tempo mais tarde, no dia em que morreste, perguntaste-me, admirada, porque gosto tanto de ti.

Não sabias que os teus panos e os teus alfinetes, as tuas histórias e cantigas, teceram para sempre o manto de protecção que ficou a pairar sobre mim?

Lembro-me muito bem do teu sótão, avó.

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