Chamava-se Song Yonglun, o meu amigo chinês. Era professor catedrático na Universidade Tecnológica do Sul da China e veio a Lisboa por alguns meses fazer um trabalho de investigação. Por acasos felizes da vida, calhou ficarmos, ele e eu, na mesma sala.
Tinha as pálpebras superiores a cair suavemente e quase sem curvatura por cima dos olhos escuros, um pouco tristes.
Se conversava no corredor com alguém, juntava os pés e as mãos, braços caídos mas não abandonados, baixava ligeiramente a cabeça enquanto ouvia e depois ficava a pensar um pouco antes de falar.
Nessa altura, para falar, levantava a cabeça olhando de frente o seu interlocutor e mantendo a postura corporal. Ele era humildade, inteligência e sabedoria. Paz e tranquilidade.
Eu, que saltitava de crescer em crescer ainda na casa dos vinte e cheia de inseguranças, dúvidas e certezas, mistura explosiva, parava o relógio do tempo para o ouvir.
De cada vez que saía da sala onde trabalhávamos, ele fazia-o a caminhar para trás, para que não me virasse as costas. Na minha existência imberbe de então, se da primeira vez achei aquilo esquisito, logo me enchi de respeito.
Se nos via, a mim e aos outros colegas do corredor, a rir com as diferenças que ele trazia, baixava os olhos e sorria na espera sem impaciência. Nós haveríamos de crescer.
Vivia no campus universitário da sua universidade, numa das melhores casas atribuídas aos professores da cátedra. Tinha cerca de vinte metros quadrados e partilhava-a com a família, ao todo quatro pessoas. Nunca tinha tido um domingo livre para ir ao parque com a sua única filha, de cinco anos, e assim cumprir o sonho da sua mulher. Trabalhava sete dias por semana até muito tarde.
Parecia saber sempre como reagir aos conflitos que outros criavam.
Um dia perguntei-lhe para que era eu calhada, o que achava ele? Ouviu a minha pergunta, foi pensar. No dia seguinte deu-me a resposta: editora de livros, eu devia ter uma editora de livros.
O meu amigo Song Yonglun voltou para a China em agosto de mil novecentos e noventa e cinco.
Eu, animada da sabedoria que dele tomei, com profundidades essenciais sobre a existência humana e a dar os primeiros passos na arrumação de prioridades, escrevia-lhe. Por vezes enviava-lhe um facsimile, por ser tão imediata a comunicação. Ele nunca respondia.
E eu insistia, insistia, deve ser da distância, das linhas, insistia.
Um dia respondeu. Pediu-me para não comunicar com ele porque lhe causava problemas na Universidade, não tinha autorização para receber as minhas missivas. Não era suposto ele ter feito amizades em Lisboa.
Nunca mais lhe escrevi e nunca mais o vi.
Não sei se agora vive menos preso nas amarras da sua cultura ou se isso não lhe importa porque a sua alma é livre.
O que sei que sei é que ele continua a dar-se tempo para pensar.
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