(começa o rodeio)
Bem sei que a poesia não se deixa apanhar por mim. Enquanto a persigo com marcha insistente, porém desajeitada e grosseira, lembrando patas de elefante, dedico-me esta manhã a compor uma jarra de flores que fui apanhar, quer dizer, roubar, depois de saltar por cima de uma lagartixa que se atravessou no meu caminho. Olha uma lagartixa foi tudo o que me saiu, assim, de tesoura na mão. Com lagartixas não temos problemas, mas lembro-me que não conheço nenhum poema que as mencione. As flores apanho-as com as mãos trémulas porque não tenho jeito para roubar, mas a casa que possui a fachada junto à qual elas vivem, não tem ninguém há muito tempo. Mesmo com uma desculpa tão boa, a composição florida, depois de pronta, vê-se bem que não obedeceu às minhas melhores intenções.
(fim do rodeio)
Entrámos no recinto da Feira do Livro já lá vão quatro tardes e quase todas quentes. Ele ainda não tinha chegado, mas eu posicionei-me imediata e estrategicamente junto à mesa com pilhas de livros no meio das quais a fotografia de rosto sorridente me diz que é ali mesmo. Espero por este momento há um tempo considerável e portanto estou ligeiramente ansiosa. Daqui já não saio.
(Erik afasta-se para ir comprar garrafas de água, a minha filha também desaparece, vai procurar um livro lá dela)
- Também está
à espera dele? – meto conversa com a senhora que já ali está, sentada ao lado de um saco que promete o conteúdo.
- Também.
Adoro a escrita dele. Hoje trago estes - e abre o saco para me mostrar que são vários os que traz - mas amanhã volto cá com o resto, não
podia carregar os livros todos de uma vez, tenho nove.
Gosto de pessoas que gostam de outras. E que vêm dois dias seguidos à feira para ter os livros todos autografados. Portanto continuo a alimentar a conversa com esta senhora, que passou por me dizer que é transmontana - como ele - e que viveu no Brasil - como ele.
- Temos estes dois pontos em comum - e sorri orgulhosa.
Das duas, não sei qual está mais ansiosa, mas quem o vê chegar sou eu.
- Ele já chegou, está ali - e aponto discretamente para o abraço do Francisco José Viegas no qual ele quase desaparece.
(Erik chega com três garrafas de água na mão, declarando que um euro é muito barato por uma garrafa de água destas num sítio destes, um euro é no money)
Deixo os minutos de privacidade entre ele e a transmontana dos nove livros e avanço já para o momento em que me sento à sua frente. Apertamos as mãos.
- Eu ainda estou a tremer, é da viagem, são muitos quilómetros desde Trás-os-Montes, sabe - sorri-me e pergunta - Qual é o nome?
Digo o meu nome e também estou a tremer, mesmo sem viagem, mas ele
- Não tem Maria, antes ou depois, é nome sem Maria?
- Sem Maria, não sou Maria.
E, de repente, olha-me de novo e sai isto:
- Tem um blogue, não tem?
- Tenho...
- Não me diga qual é, eu sei, espere.... ai, diga lá a primeira letra...
Eu disse as primeiras letras e ele disse o resto. O grande José Rentes de Carvalho lê este blogue e deu-me uma enorme alegria ao dizer-mo.
Quando me despedi dele, não tinha vontade de sair dali: o carinho com que me tratou trago-o guardado no coração (para a próxima, levo os livros todos).
(Pó, Cinza e Recordações, o livro que acaba de ser autografado alguns parágrafos acima e sem Maria no nome, foi escrito entre Maio de 1999 e Maio de 2000, em forma de diário. Neste período nasceu a minha segunda filha, a que foi acima referida. Já na estação de metro, no regresso a casa, dei-lhe a ler o texto do dia do seu nascimento. Quando lhe estendi o livro aberto, ainda tinha as mãos a tremer.)
Até eu fiquei a tremer de comoção.
ResponderEliminarQue bonito, Susana! -- a sem Maria. (;
Obrigada, Carla. Foi, realmente, um momento dourado para mim. :-)
EliminarComunicação
ResponderEliminarPequena lagartixa branca,
ó noiva brusca dos ladrilhos!
sobe à minha mesa, descansa,
debruça-te em meus calmos livros.
Ouve comigo a voz dos poetas
que agora não dizem mais nada,
– e diziam coisas tão belas! –
ó ídolo de cinza e prata!
Ó breve deusa de silêncio
que na face da noite corres
como a dor pelo pensamento,
– e sozinha miras e foges.
Pequena lagartixa – vinda
qara quê? – pousa em mim teus olhos.
Quero contemplar tua vida,
a repetição dos teus mortos.
Como os poetas que já cantaram,
e que já ninguém mais escuta,
eu sou também a sombra vaga
de alguma interminável música.
Pára em meu coração deserto!
Deixa que te ame, ó alheia, ó esquiva...
Sobre a torrente do universo,
nas pontes frágeis da poesia.
Cecília Meireles
Presumo que Cecília Meireles não tenha conhecido Rentes de Carvalho. Sorte a tua que com ele conversaste e tiveste um extraordinário retorno sobre a tua escrita.
Beijos, Susana. :)
Querida Maria, muito obrigada por esse presente. Um poema sobre lagartixas é coisa para mim, sem dúvida. :-) Adorei.
EliminarFoi um privilégio apertar a mão a tão admirável senhor.
Beijos, Maria. :-)
Querida Susana,
ResponderEliminarHá escritores "à séria".
Um beijo,
Outro Ente.
Querido Outro Ente, pois há. E por vezes também há sortudos "à séria", como eu. :-)
EliminarOutro beijo.
Eu também tremeria. Maravilha, mesmo com rodeios. :)
ResponderEliminarObrigada, querida Luísa. :-)
EliminarTão bom Susana! Sei que não me vais achar disparatada por dizer que estou aqui mesmo feliz por ti, por teres tido esse momento, desde que te leio que sei o quanto admiras JRC, já o disseste várias vezes.
ResponderEliminar"Bem sei que a poesia não se deixa apanhar por mim". Lamento desiludir-te, porque acho que, de certa forma, diverte-te andar a brincar à apanhada com a poesia, convencida que nunca a apanhas. Pois fica sabendo que, não raras vezes, o que aqui escreves é poesia, lamento mesmo ter de te dizer isto, mas, já a apanhaste Susana, embora não saibas.
Beijinhos Susana e que o resto da semana continue cheia de bons momentos.
Eu nunca te acho disparatada, Cláudia. Tenho, até, muito respeito por ti e pela tua pureza de ser. É de pessoas assim que mais gosto.
EliminarE quanto à poesia, bem, é certo que alguma já apanhei, mas ainda tenho muito que correr.
Muito obrigada pelas tuas palavras e pelo teu carinho.
Uma semana cheia de poesia é o que te desejo. :-)
Querida Susana, que maravilha, não é que eu começo quase sempre a ler os diários assim, por dias que me foram muito especiais... lá dizia Freud, "não há coincidências" e se ele sabia que em todos os prosadores há um coração de poeta adormecido! Não esperaria outra coisa de Rentes de Carvalho.
ResponderEliminarE agora uma dica para hortências (roubadas), que não se querem murchas: dar-lhes uma chuveirada de cabeça para baixo, sacudi-las depois e colocá-las na jarra com água fresca até ao pescoço, um quase afogamento. Depois ir acrescentando sempre água fresca para manter o nível; mantêm-se lindas e frescas pelo menos até ao próximo "roubo"...
Beijinhos Susana.
hortênsias!
EliminarMuito obrigada, querida Teresa.
EliminarHoje de manhã, como choveu, elas apanharam uma chuveirada das nuvens e estavam viçosas que nem pareciam as mesmas. :-) Confirma-se, então, o teu método de afogamento. :-)
Beijinhos de volta.
As mãos a tremer e o coração a bater em desalinhados sobressaltos... Também eu transbordaria emoções por todos os poros. Que privilégio, querida Susana!
ResponderEliminarUm beijinho
Um privilégio, mesmo. :-) Ele é muito querido (nas palavras da minha filha: também fofinho).
EliminarUm beijinho, querida Miss Smile.
Grande momento, Susana.
ResponderEliminarPois foi, JM. :-)
EliminarQue coisa tão boa!!! Tem bom gosto, o senhor.
ResponderEliminarMinha querida Cuca... que comentário.
EliminarMuito obrigada.
Uau!!!! :) Que emoção que deve ter sido!!! :) Que sonho! :)
ResponderEliminarFiquei muito feliz por si! :)
Bom fim de semana e boas leituras! :)
Obrigada, Luísa. Tenho pena que não possa estar aqui nestes dias da Feira, é quase injusto para si (mas bem, uma noite de fado em Buenos Aires também não é para todos! :-))
EliminarBom fim de semana também para si e boa continuação de leituras.
:) É verdade, mas não trocava isso pela Feira do Livro de Lisboa, só nestas trocas obrigadas!!:P
EliminarBoas leituras!:)
São acasos felizes que nos deixam a sorrir Susana :)
ResponderEliminarBeijos
Mas acabo de ver que ele encerrou o blogue.... e agora não consigo sorrir durante um bocado. Uma pessoa habitua-se a ler os blogues de que gosta, durante anos, o Tempo Contado leio desde 2010, e depois custa, sente-se a falta...
ResponderEliminarBeijos para ti também, querida Just (dos mais simples, :-))