a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

20/02/2017

A bicha

Hoje de manhã, quando passavam alguns minutos sobre a hora a que eu achava que abriam os correios, arrumei o meu telefone, no qual estivera a ler blogues muito bons enquanto tomava café, levantei-me, fui colocar a minha chávena vazia em cima do balcão e dirigi-me à estação dos correios, que fica na rua do café. À porta está Emília como quem espera, e eu - olha queres ver - estico o pescoço para o autocolante colado no vidro da porta, com o horário inscrito, e exclamo, ah, só abre às dez!
- Pois só, o horário mudou desde que os correios têm banco. - isto diz Emília, denotando um certo aborrecimento pelo aparente esquecimento quanto ao novo horário - antes era às nove e meia.
Dou uma olhada ao relógio e vejo que vamos ter de esperar vinte minutos. Não conhecia Emília até este momento, e só por um capricho do universo é que o nome desta senhora é mesmo Emília e não outro qualquer. Mas Emília fica-lhe bem. Ali à porta dos correios por abrir, e mediante a troca destas palavras, parece-me ser mulher serena, perspicaz, firme. Tem idade para receber cartas escritas pelo punho ainda incerto de netos eventuais.
- Vai ver que daqui a pouco se forma aqui uma bicha de pessoas. - Emília, topando ser mais conhecedora dos acontecimentos inerentes à estação de correios do que eu, informa-me de acordo com a estatística pessoalmente comprovada.
- Ah sim?...
Não passa um minuto, aproxima-se Maria dos Ais, que se junta a nós, terceiro lugar na bicha de gente, afinal parece ser verdade. Traz com ela alguns tiques que me parecem nervosos e nítida vontade de conversar, mas isto abre a que horas?!
- Às dez - dizemos Emília e eu em coro.
- Ai valha-me deus! - e faz tsc tsc com a boca enquanto abana a cabeça em sinal notório de reprovação.
Maria dos Ais, a ter netos, tê-los-á de pulso mais firme na escrita e é diferente de Emília, assentando-lhe bem o nome composto que acabo de escolher.
- Então o Benfica? Ganhou? - Maria dos Ais dirige a pergunta vagamente a Emília ou talvez a quem a apanhar, que já estão mais duas pessoas na bicha. Emília responde afirmativamente, o Benfica ganhou.
- Ai graças a deus! - e ao dizer isto, Maria dos Ais junta as mãos, que ergue ao céu, e diz ainda qualquer coisa sobre deus nosso senhor a ter ouvido nas orações.
Emília olha-a de frente e declara que o futebol não lhe interessa nada, tanto dá ganhar um como outro e às vezes ficam uns contentes e outras outros e assim é que está certo. Eu mantenho-me em silêncio e em silêncio ficamos agora as três por um momento. A bicha vai crescendo.
De repente Maria dos Ais retoma o discurso, eu disse que ela trazia vontade de conversar mas afinal é vontade de falar que traz, e atira com isto: este mundo está de pernas para o ar! os novos fazem cada coisa que põem o mundo de pernas para o ar!! Não colheu qualquer resposta. Já estamos sete, faz-me notar Emília em voz baixa, que parece não estar agradada com a conversa de Maria dos Ais e aproveita para validar a sua profecia quanto à bicha. Mas a outra continua, como se "os novos" estivessem carregados de culpas e ela uma sua vítima, viraram o mundo de pernas para o ar, não sei onde isto vai parar!
Não esclarecendo o que fizeram os novos para terem conseguido tamanha façanha, avança para o exemplo com que nos brindou.
- Os meus filhos não saíram assim, graças a deus, agora os meus sobrinhos...
E mesmo não tendo havido ali registo de incentivo para que ela desenrolasse de que sofrem os sobrinhos, continua.
- Os meus sobrinhos da França, quando me vieram cá visitar, tiraram os brinquinhos, aquelas porcarias que eles usam, já sabem que eu não gosto, tiraram tudo antes de me entrarem em casa, era o que mais faltava! Os meus filhos, graças a deus, nunca foram assim! Só riam, os meus filhos! Gozavam com os primos! Mas aquilo tem alguma beleza!? Homens de brinquinhos! Este mundo está de pernas para o ar!
Dentro da estação dos correios, o funcionário aproximou-se da porta e abriu-a com a chave. Antes de entrar, olhei para trás e contei rapidamente: catorze pessoas na bicha. Emília tinha razão.
Quanto a Maria dos Ais, também. O mundo, o dela, está de pernas para o ar.

12 comentários:

  1. Ainda bem que a Maria dos Ais não me conhece. Nem a mim, nem ao meu filho. Ele usa brinco desde o final da primária. Ia ser um falatório.
    :)

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    1. Por outro lado, querida luisa, se a Maria dos Ais te conhecesse e ao teu filho, talvez se transformasse e o mundo dela ficasse de pés mais no chão.
      :-)

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  2. O local ideal para uma daquelas reportagens da TVI que ausculta a voz do povo... e onde o povo opina sobre tudo. A maior riqueza do país é o nosso bom povo que sobre tudo opina, assim se apresente microfone, assim se vislumbre câmara.
    :-)

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    1. Cada vez mais me convenço mais de que as opiniões se devem dar, em se querendo, quando pedidas.
      Mas que a mera mudança de horário de uma mera estação de correios pode dar falatório nessas reportagens, pois pode. À partida acha-se sempre tudo mal. Dá mais estilo.
      :-)

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  3. Aposto que foram os novos da Maria dos Ais que mudaram o horário dos correios. O mundo está de pernas para o ar!

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    1. É praticamente certo que sim. Já que a conversa começou precisamente pelos transtornos que a mudança de horário do estabelecimento causa.
      Tenho pena que, no geral, as pessoas não ponderem também a hipótese de ter havido razões válidas para as coisas serem como são. Enfim.

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  4. A este texto, uma certa pessoa que conheço diria de imediato, "não se diz bicha, agora diz-se fila". Mas acontece que persevero, também digo bicha.

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    1. Eu também já fui corrigida por várias pessoas quanto a utilizar a palavra bicha para me referir a filas. E depois relembro quem me corrige que há palavras homófonas e homógrafas na língua portuguesa e esta é um exemplo disso.
      :-)

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    1. Pois eu também. E há outra coisa que digo: fio dental em vez de fio dentário quando me refiro àquela fibra fiada que fazemos deslizar entre os dentes durante a higiene respetiva. É que desde que a peça de lingerie que partilha desse mesmo nome surgiu, sou corrigida sempre que digo fio dental referindo-me à tal fibrazinha dos dentes.
      Sónia, tu como mulher da moda, diz-me lá se a peça de lingerie se vai sentir ofendida de partilhar a designação, não vai pois não?
      :-)

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  6. "Os meus filhos, graças a deus, nunca foram assim! Só riam, os meus filhos! Gozavam com os primos!"
    Que orgulho ser mãe de filhos que não admitem a diferença.
    Beijinho, Susana.

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    1. Ainda há muita intolerância mascarada de tradição e bons costumes. Eu entendo que uma velhota como esta não ache bonito ver homens de brinco, o que não entendo é que isso se sobreponha ao amor que supostamente lhes deve ter e os obrigue e remover os adereços para serem dignos de lhe entrar em casa. Enfim.
      Um beijinho, Marta.

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