Não sei que efeitos terá uma infância sem quadros nas
paredes. A minha, feliz de mim, teve-os. Neles muito viajei, nalguns ancorei ensaios de eu (tinha escrito de mim mas ficava mal a repetição) em versões paralelas.
No quarto dos meus avós, um quinto andar de uma
perpendicular à avenida da República de Lisboa, havia um quadro fascinante. Não
era grande nem pequeno, mas era fundo. Sempre que me apanhava sozinha com ele, fixava-o
bem e entrava. Era um quadro silencioso e escuro, um quadro só e
triste. Era também perfeito para uma tal versão paralela porque era a antítese
de mim. Além disso, ninguém, absolutamente ninguém, parecia reparar nele (só
eu); era portanto um quadro ignorado. Estava numa parede por cima da cómoda que ficava aos
pés da cama. Mostrava uma pequena casa de pedra sem janelas (e não tendo
janelas não tinha nada), em avançado estado de ruína (quer dizer, tinha de
certeza bichos) e toda escuridão (por exemplo, cobras e ratos). Havia também uma nora, totalmente perra, inerte, junto à casa (a nora não tinha importância). A fazer-lhes uma
sombra permanente estava uma frondosa árvore em grande plano, cheia de folhas
verde-escuro, quase preto, secundada por muitas mais que se desvaneciam para
longe (o fundo do quadro) desenhando a margem de um rio que banhava a casa e
explicava a nora. O rio, esse, corria vivo (óbvio), a água tinha espuma branca
aqui e ali e claro que era fria ou completamente gelada. O céu estava carregado
de nuvens escuras mas ainda não tinha começado a chover (nos quadros nunca
chove) e eu ficava cheia de frio e de tristeza, de medo, de solidão, ficava
perdida e quase morta dentro desse quadro. Mesmo assim, mantinha-me lá. Ganhava
coragem e entrava para dentro da casa, para encontrar os bichos que não se viam
(cobras, já disse, e ratos), alguns mortos. Também para sentir o cheiro a
mofo podre e o frio gelado nos meus ossos. Ficava no quadro até já não aguentar mais o ensaio de bravura a que
me submetia. E então tomava a saída. Deslizava o olhar para a moldura dourada que
o aprisionava, toda trabalhada em muitos relevos, refletindo brilhos nas curvas
da madeira pintada. Aí, respirava fundo primeiro. Depois, ia a correr para junto da minha avó.
(este post nasceu
deste outro, que me reavivou a memória, embora o tema se desvie um bocado, não muito)
Ai, eu gostava era de ter um daqueles aliens-sucata de Ginger. Por uns milhares de euros posso ter um exemplar.
ResponderEliminarVou vender o carro. :)
"aliens-sucata de Ginger" tive de ir consultar... bem... acho que é melhor não venderes o carro, Diogo.
Eliminar:-)
"Um quadro só vive para quem o olha. Gostei muito da reminiscência.
ResponderEliminarBoa noite, Susana.
A arte, toda ela, vive para quem a sabe ver. Ou ouvir.
EliminarObrigada. :-)
Boa noite, caro Impontual.
Sem dúvida um modo original de estimular a adrenalina e treinar a bravura.
ResponderEliminar~CC~
Mas nunca saberei se treinei grande coisa... até um dia precisar dela, da bravura.
EliminarUm abraço, CC.
Ahhh que engraçado. A minha mãe tinha um quadro na sala, que era um caminho para nenhures no meio de um arvoredo. Tenho muitas saudades desse quadro e, aliás, já estou a chorar. Lembra-me muito a minha infância e depois a minha avó, que o herdou quando mudámos de casa. Nunca mais o vi. Também nunca mais vi a minha avó. Ele há coisas que nunca deveriam desaparecer das nossas vidas.
ResponderEliminarNa verdade desaparecem, mas apenas em parte. Esse teu quadro ainda o tens - ainda te faz chorar.
EliminarEspero que o encontres, querida Uva. Quem sabe?... :-)
Uma menina estranhou a imagem presente no quadro e disse para a mãe:
ResponderEliminar– Oh, olha ali tão mal feito, mãe!
A mãe explicou à menina que não era mal feito, era uma arte, há uns senhores que fazem umas coisas que parecem esquisitas mas é mesmo assim.
E eu ali, por baixo do quadro. Queria ver qual a estranheza que havia despoletado a reação na menina. E eu ali, por baixo do quadro, como que prisioneira duma circunstância. Podia olhar para trás mas isso ia dar-me cabo do pescoço, por causa da camada de roupa que trazia vestida.
Passado um tempo vejo aproximar-se uma senhora toda pimpona. Sapatinho alto, casacão cheio de pêlos fofinhos e quentes, beiças escarlate. Uma presença fria, nada atrativa. Olhou com grande interesse para o dito quadro. Séria, no entanto. Seriíssima. Ar de entendida. Ar de desdém.
Afinal parece que o quadro não presta, pensei eu.
E eu ali, por baixo do quadro.
Quando me levantar daqui tenho de não me esquecer de mirar o quadro, pensei eu.
Seria mais um par de olhos. Mais um olhar crítico e perscrutador.
O tempo passou. Por acaso ia-me esquecendo de olhar para trás. É 'alguém' que tem um par de pernas e pés que não tocam no chão, a cabeça no lugar das ancas e depois mais nada de corpo. Na cabeça tem um chapéu-de-chuva em duas perspetivas, o rosto encontra-se de perfil, o nariz está desfasado mas o olho, porém, olha-nos de frente.
É uma imagem muito estranha, a menina tem toda a razão. O melhor do mundo deve mesmo ser as crianças... |9 dezembro 2011|
Se não estivesse tão à vontade contigo nunca colocaria um texto meu na tua caixa de comentários sem que primeiro pedir 'posso?'
Mas olha, cá está.
É que o teu texto me fez lembrar deste meu, e acredito que a blogosfera pode ser, também, esta sintonia. Ademais, o teu texto foi despoletado por um outro, da Uva, o que me levou a partilhar o 'meu quadro'. É assim uma espécie de corrente blogosférica, vá, mas daquelas espontâneas.
Beijinhos
Gina, gostei muito da tua história do quadro, esta corrente que continuaste, mas do que gostei ainda mais, mesmo muito, foi de dizeres que estás "tão à vontade comigo". Obrigada. Faz-me feliz saber que quem me lê se sente bem aqui.
EliminarBeijinhos para ti também. :-)
Este comentário é para ti e também para a Uva (se por esta caixa de comentários voltar a passar)
ResponderEliminarAchei muito giro esse post da Uva ter-te inspirado para este teu, é que, quando li "Da gratidão" e também o "Nua demais", fiquei assim, sabes quando acabamos de ler uma coisa e pensamos mais ou menos isto, "opá! Que bom que isto está", mas depois, como não temos mais nada para dizer, vamos embora sem dizer que gostámos tanto de ler aquilo, pois, foi isto que aconteceu, mas agora, que também gostei tanto de ler este teu post, que teve como fonte de inspiração aquele outro, já não fui embora calada.
Ficam aqui dois abraços, um para ti e o outro para a Uva.
E já estou outra vez a chorar. Vocês são terríveis. Oh diacho... estarei grávida??????? As grávidas é que passam a vida a chorar não é?
EliminarEra giro agora com 40 anos....
Sei bem a que te referes, Cláudia. A mim acontece inúmeras vezes ler posts de que gosto muito mas não ser capaz de os comentar. Este da Uva foi um deles. Fiquei a pensar nele e depois voei para aquilo que deu origem a este meu post. :-)
EliminarOutro abraço para ti, Cláudia (e bom fim-de-semana)
Uvinha, isso seria uma ótima notícia! 40 anos é uma idade excelente para se ser mãe. (sei de uma senhora cuja mãe a teve aos 53, portanto...)
(mas espero que.... que consigas mudar o tal quadro)
Que bonito! A minha infância foi sem quadros. A seco. Mas a imaginação nasce e cresce ao sabor do que existe. E existe sempre qualquer coisa. Tenho de experimentar essa de pedalar para trás para travar, não pertence ao meu manual de boas maneiras; pedalando para trás só conseguíamos soltar a corrente dos carretos e havia aquela sujidade nas mãos a encarreirar dentes com intervalos da corrente:).
ResponderEliminarbea, vou confessar-lhe uma coisa. Eu estava um bocadinho apreensiva de a ter desiludido demasiado com aquele título de há uns posts atrás e a ter assim afastado deste blogue. Hoje, quando vi o seu comentário fiquei toda contente.
EliminarSim, de facto é verdade que não tendo quadros temos outras coisas.
O travar a pedalar para trás é próprio de algumas bicicletas, mas eu não me ajeito - prefiro travar com as mãos no guiador apertando as alavancazinhas para poder pôr os pés no chão quando me apetecer ou precisar, sem cair. :-)
Oh! Não fique apreensiva. Foi só que, por uns dias, não tive mesmo oportunidade de vir à net:).
EliminarJá estou mais descansada acerca das bicicletas. Afinal sempre percebo alguma coisa acerca de pedais:).
sendo sobrinho e primo de pintores e irmão de um designer, cresci rodeado de arte. (a facilidade do desenhar está cá mas a vontade acho que não a herdei)
ResponderEliminaristo para dizer que sei bem o que é sonhar a olhar um quadro. trazem magia e fazem-nos imaginar mundos paralelos que tornaram as minhas brincadeiras na sala de casa bem mais animada com o grande castelo do meu tio em pano de fundo.
já nos tempos de entrada na fase adulta adormecia todos os dias olhando uma cópia do The Blue Circus de 1950 do Chagall. admirava a magia que me embalavam os sonhos numa época de amores e corações quebrados.
agora contemplo um original de um dos meus tios, oferta dedicada, um velho sobreiro num monte num final de tarde de outono. uma calma imensa e singela que a todos cativa.
negar a arte é negar aquilo que nos difere de tudo o resto.
Nunca vivi perto de um Chagall, não calhou (ainda). Mas de facto as obras que nos povoam a existência podem vir a ter um papel determinante da forma como olhamos a arte.
ResponderEliminarGostei tanto deste seu comentário, il, que me apeteceu emoldurá-lo.
Obrigada :-)
devolvo a simpatia com outro sorriso!
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