a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/03/2013

Os aviões

Os aviões fascinam-me desde criança.

Sempre que o meu avô estava para chegar de viagem, nós íamos buscá-lo ao aeroporto e a minha mãe levava-me ao terraço mágico.

Ficávamos a ver os aviões aterrar e descolar. Eu não respirava para não roubar o ar, que era todo deles. Não me mexia para não lhes perturbar a manobra. Sentia-me minúscula e ao mesmo tempo protagonista de uma aventura inacreditável! Se os meus colegas lá do colégio vissem aquilo! Como podiam os aviões, tão grandes e pesados, contrariar a tendência que tudo o resto tinha, e subir ao céu como se fossem passarinhos, leves e ágeis? Ou então, com toda a delicadeza, mostrar orgulhosos as rodas minúsculas e airosamente beijar o chão como se fosse uma folha de Outono a pousar levemente?

Eram momentos inesquecíveis. Eu tentava adivinhar em qual vinha ele, o meu avô. A minha mãe sabia tudo sobre os aviões, e por isso sabia sempre qual era o dele: olha lá vem ele, já está! Será que o via através de uma das janelas microscópicas? Ou será que os aviões falavam com ela? 

Descíamos e eu ia colar o nariz ao vidro até ver o meu avô caminhar em nossa direcção, o porte confiante, que terá ido ele fazer tão longe?

Antes de ter tempo de acabar de crescer, fecharam o nosso terraço. O meu avô continuou a viajar, e nós a ir esperá-lo. No entanto, a magia já não estava lá. Perguntei à minha mãe porque nos tinham feito aquilo, será que roubei um bocadinho do ar aos aviões? Mas isso não sabia ela. Desconfio que também não se conformou. 

Apesar disso, a minha mãe continuou a saber os aviões de cor. Bastava-lhe olhar para o céu: olha, lá vai um Boeing 727! Ou um 737. Eu tentava ver-lhes as diferenças, também queria aprendê-los de cor. Achava que o Boeing 727 era mais pequeno que o 737, confiava na lógica dos números escolhidos para os modelos. Muito mais tarde descobri que afinal é ao contrário e que a ordem numérica cresceu para o modelo mais novo.

Hoje, quando vou a conduzir na segunda circular, alinho-me em rota cruzada com o momento da aterragem e deixo que o trem do avião roce delicadamente o tejadilho do meu carro. Assim, mantenho o meu tesouro bem guardado, mesmo sem o nosso terraço, sem a mão da minha mãe e sem tudo o que ela sabia sobre aqueles mistérios. A magia, claro, perdeu cor.

Acho que para ela também. A minha mãe já não olha para o céu e já não diz que modelo é aquele que vai a passar. Eu sei que é porque se zangou por causa do terraço, o tesouro que alguém lhe tirou. 

Tenho medo que ela pense que fui eu que lho roubei.

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