a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/06/2016

O post que não se percebe do que é (mas tem essência, claro)

Entro no dia saboreando devagar dois capítulos do livro da Hélia Correia. Já tinha decidido que este é dos melhores livros da minha vida, mas foi hoje que, digamos, assumi. Por exemplo, ela pode bem ultrapassar Dostoiévski na minha escala, ai pode pode. E a Saramago chega-se muito perto, o que dá que assim nem fica ele tão só. Meto o pensamento no bolso para o tornar a usar enquanto, mais tarde, aspiro o chão, uma barulheira este aspirador, seria descabido o Nobel?, limpo o pó e vou dobrando o pano deixando viradas para fora as partes limpas até não haver partes limpas, qual descabido, pensando bem nem sei de que estão à espera para lhe dar o Nobel, lavo a casa de banho, que é das tarefas que não me agradam mas fica sempre tão bem feitinha, não serão justas as comparações, claro, nem eu devia fazê-las, cada um escreve como escreve e todos fazem falta, ai o que seria do mundo sem Dostoiévski, deito água no balde até meio, ou sem Saramago, nem pensar nisso, meu rico Saramago, agora duas golfadas ou três do líquido verde de limpeza para dentro da água do balde, eu se um dia cegasse seria muito infeliz por não poder ler, lavo o chão do piso superior, que não é extenso, há livros áudio, pois há, mas que é lá isso, a leitura é para ser em silêncio, e as casas assim pequenas não são más de limpar, enquanto o chão seca em cima, atiro-me à loiça no piso de baixo, de lavar a loiça gosto eu, os pensamentos são como as cerejas e ocorre-me outra vez aquilo da crítica literária, mas que falta faz a crítica literária à gente?, quem precisa de crítica literária?! e com isto quase ia para me esquecer de contar as duas máquinas de roupa que estendi ao sol enquanto o houve, que foi de manhã que houve, até parecia ali de repente um dia junho, e enquanto mudo as camas caramba, estes lençóis de elástico são práticos mas esticá-los está quieto, o caramba é daqui: parece impossível ter chegado a esta idade sem Hélia Correia, eu se calhar devia ter vergonha e ficar caladinha, afinal não vim cá contar quando me encantei com o Dinis Machado, pois não? e tanto me ri com ele, depois, já noite, passo a ferro a primeira máquina que não secou bem, o nevoeiro voltou a subir o monte e vinha todo de amores com a chuva miudinha, ainda parece que se divertem a chuva miudinha e o nevoeiro, ou com o Afonso Cruz, que mete desenhos nas palavras o Afonso Cruz, e inventa lugares impossíveis, estou mesmo farta deste fevereiro metidinho, os pirilampos coitadinhos vê-se perfeitamente agora no escuro que nem conseguem dar as voadinhas deles como deve ser à procura das fêmeas, as fêmeas estão no chão a piscar a sua luzinha, cheias de esperança, as fêmeas não voam, são confinadas à espera que é prima da esperança, da Clarice Lispector contei, também me encanta a Clarice, quando ela quis oferecer um presente à sua máquina de escrever, ah! aí contei e foi bom, foi não?, e claro que no fim do dia estava com as mãos secas como carapaus, tanto detergente tanta dobra do pano do pó tanta coisa, lá fui passar creme nas mãos, e ainda antes de terminar o post que está mesmo a extinguir-se, dizia eu que devia ter vergonha e não tenho, o que tenho é esta vontadezinha integrada de escrever todos os dias agora que há vagar, agora que posso, agora que estou de férias.

9 comentários:

  1. O que me apetece dizer é que este post (que se percebe do que é, ai percebe, percebe :-)) é assim mais uma daquelas maravilhas que te saiu dessa "vontadezinha integrada" de escrever que também é (digo eu sem condicional, assim de uma forma toda convencida, portanto) a essência deste blog, essa vontade, esse prazer que é para a sua autora escrever.

    Um abraço à autora que faz esta barrela na escrita e por isso os posts aparecem-nos assim nada encardidos e a brilhar, a brilhar.

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    1. Mas vou dizer-te, Cláudia, ainda antes de te agradecer as palavras belas que aqui deixaste, que o post ficou muito melhor com o teu comentário, ele, o post, sentia-se feioso, mastronço, cheio de buracos. A sua autora, que como tão bem dizes gosta de escrever, nem sempre fica satisfeita com o resultado.
      E agora então agradeço as tuas palavras, que vieram pôr uma jarra de flores na minha mesa, querida Cláudia. :-)

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  2. Ah, as férias... Aproveitamos logo para pôr a limpeza em dia. E as leituras e a escrita quando, de facto, se escreve. E aqui escreve-se como gente grande. :)
    Engraçado falares do silêncio para a leitura, ou da leitura silenciosa. Este é o nosso modo mas nos primórdios da palavra escrita a norma era a leitura em voz alta. Assim o explica Alberto Manguel em "Uma história da Leitura".

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    1. E é de facto importante a leitura em voz alta, quando se está a crescer e se aprende pela mão dos mais velhos, por exemplo. Ainda me lembro da entoação da voz da minha mãe a ler-nos histórias à cabeceira. Mas agora, e no que a mim diz respeito, gosto, preciso, do silêncio, também na leitura. :-)
      Talvez esse hábito dos primórdios de se ler em voz alta se devesse ao facto de poucos saberem ler.
      Muito obrigada, querida luisa, por isto que aqui deixaste.

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  3. Tem tanta essência, Susana. Fez-me lembrar um breine cetorme (brain storm, é melhor 'traduzir porquanto não me encontro no meu lago). Sério, fez mesmo. Aliás, sempre te considerei pródiga nesses reboliços de mente, nunca tinha era dito nada.

    Boas férias

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    1. Pois fica sabendo, querida Gina, que esta casa também é tua e por isso não carecem de tradução as tuas muito próprias invenções, aliás bastante interessantes como exercício da mente, o tal breine.
      Breine cetorme é precisamente o que por aqui acontece, por vezes, e por isso é que se torna necessário encontrar-lhe um uei aut.:-)
      Muito obrigada, Gina.

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  4. É uma prosa corrida e com boa pedalada. Ainda por cima empurrada pelo bom humor. Não se sabe onde irá parar...

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    1. Olá bea, bem-vinda!
      Muito obrigada pelas tuas palavras. E tens razão, não se sabe mesmo onde isto irá parar. :-)
      (gostei do teu sapato feito de panelas, é uma das obras da Joana Vasconcelos que mais me agrada)

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