- Eu tinha muito tempo, filha, a camioneta só passava daí a duas horas e por isso, olhe, limpei a campa, tirei os caracóis, as caracoletas, estava cheio de caracoletas o retrato do meu marido, é o tempo delas, sabe?... tirei todas, limpei tudo, pus flores novas, claro, mas roubaram-me uma jarra, eu tinha duas e só lá estava uma, alguém levou, filha, e quem é que leva assim jarras das campas? o coveiro diz que não viu nada, eu acredito, coitado, ele não pode ver tudo, não é? paciência, o que hei de fazer? e então pedi-lhe para pintar, filha, para ficar mais arranjadinho ali em volta, sujam-se muito as campas, e ele vai pintar, o coveiro, eu dou-lhe dez euros e ele pinta a campa do meu marido. E depois, ainda tinha tanto tempo... tinha tempo...
- Conversou com ele.
- Sim, isso, filha, conversei com o meu marido. Até lhe disse que pintei o cabelo, perguntei-lhe se de lá de onde ele está gosta de me ver o cabelo assim.
Dizendo isto, a dona Esmeralda leva a mão ao seu cabelo curto, pintado pela primeira vez na vida, submetido a um dos atrevimentos nunca permitidos pelo marido, que não, pintar para quê se és velha? queres ser nova? não és nova, mulher!
E a dona Esmeralda agora realmente mais nova, um bocadinho mais nova, conta-me isto à tarde, eu levei-lhe mais um livro, desta vez é uma história de amor, dona Esmeralda, ela quer histórias de amor, passa a mão no cabelo como se fosse ali um tesouro, à hora do almoço levanta a touca que usa para servir os pratos e mostra o cabelo a toda a gente, pergunta se gostamos, nós gostamos, e agora está aqui à minha frente, trata-me por filha, agradece-me o livro que aperta junto ao peito, diz que vai sentir a minha falta quando eu sair, eu vou sair, pergunta se me pode dar dois beijinhos, claro que pode, pede desculpa por ter alguma coisa na cara que eu não senti, o que eu vi muito bem foi o que sucedeu quando mostrou o cabelo ao marido, aqui, outra vez, para ele ver se gosta, de lá de onde ele está, o meu António, vi muito bem assomarem as lágrimas que ela segura com força nos olhos.
É uma história de amor muito bonita.
ResponderEliminarÉ uma história de amor muito bonita vivida por um coração muito bonito.
Eliminar:-)
Oh! Acabo de ler o comentário da Cuca e agora vou escrever isto...mas...pronto, cá vai:
ResponderEliminarGostei tanto deste post e tão pouco dessa história de amor. Sei de umas quantas "donas Esmeraldas" com essa devoção aos seus "Antónios" os mesmos que lhes dizem ou disseram "pintar para quê se és velha? queres ser nova? não és nova, mulher!" E quando se lhes pergunta se ouviram um "estás tão bonita", se alguma vez ouvem um "estás tão bonita" ou alguma coisa parecida vem um sorriso acompanhado de um "agora cá", mas eles têm sempre outras qualidades e elas continuam a sonhar, ouvindo, vendo ou lendo histórias de amor alheias e achando-se tão longe daquelas protagonistas que encaram com naturalidade as coisas não se terem passado ou passarem assim com elas.
Desculpa se "estraguei esta história de amor" mas não estou a conseguir lê-la de outra maneira.
Beijinhos, Susana.
(entretanto, Miss Smile trouxe a leitura que me fez reconciliar com essa história) :-)
EliminarHá pessoas que têm uma capacidade de amar acima do egoísmo de quem amam. Eu acho isso tão grande, Cláudia, que me faz andar volta e meia a escrever sobre esta senhora que dá pelo nome de Esmeralda, uma pessoa preciosa. A mim também me indignam certas coisas como esta que mencionei no post e tu transpuseste para o teu comentário, mas continuo a deslumbrar-me com a capacidade que ela tem, teve, de amar acima disso.
EliminarTu não estragaste nada, apenas desejarias ver uma dona esmeralda mais amada, como teria merecido. E como eu também teria gostado.
Beijinhos, Cláudia. :-)
Para mim, a Dona Esmeralda é que é bonita. Tem um coração alto, cheio de claridade, daqueles que se inclinam para a bondade. Os amores partem, como bandos de pássaros. As histórias ficam. E as histórias são o que fizermos delas. Há pessoas que têm um ninho no coração.
ResponderEliminarUm beijinho, querida Susana :)
E há pessoas que conseguem descrever tão bem aquilo que sentem. :-)
EliminarVou ficar a pensar nisso de se ter "um ninho no coração", querida Miss Smile. Que maravilha.
Outro beijinho.
Gosto da Dona Esmeralda. Acho que foi uma sorte que o seu António partisse enquanto ainda pode gozar um pouco a liberdade.
ResponderEliminarNo fundo, ela é mais feliz, agora.
Beijos, Susana :)
Eu também acho que ela é mais feliz agora. Havias de a ver a descobrir a leitura, a contar-me o que vai lendo nos livros como se fosse uma história de verdade, os olhos a brilhar.
EliminarBeijos, querida Maria. :-)
Tenho pena de não poder ler mais histórias da dona Esmeralda, mas sempre podes repescar algumas da tua memória, umas que nunca nos tenhas contado. Nunca te disse mas olha, vai agora, a dona Esmeralda é um dos 'temas' que mais gosto em ti. Sim, em ti, porque me fazes gostar dela sem a conhecer.
ResponderEliminarBeijinhos
Que bom dizeres-me isso, Gina. Tantas vezes me coibi de escrever mais histórias sobre ela, para não aborrecer as pessoas (se bem que só lê quem quer...). Mas ainda virão mais algumas, sim, eu não vou já já embora :-)
EliminarObrigada, Gina, beijinhos de volta.