a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

06/11/2016

Tapetes de ouriços

As casas desta aldeia serrana, beirã, estão todas vazias menos esta de onde escrevo. Havia uma vizinha checa, ali em cima, uma vizinha de Brno. Não sei o nome dela, vamos imaginar Sardska se faz favor. Sardska apareceu aqui na rua no dia de fevereiro em que nevou toda a manhã, e eu bom dia para ela. Vinha sem dentes Sardska, trazia uns três ou quatro, talvez, e vestia roupas muito velhas; a solidão, quando perdura, faz isto às pessoas, desarranja-as. Sorriu-me e respondeu-me em inglês. Há quinze anos não via nevar neste sítio. Com ela vinha um cão dando saltos estranhos, olhei-o. Ela: que ele nunca tinha visto neve e estava doido de alegria o cão. No verão soube que Sardska foi para uma clínica, para ter mais companhia. Também havia um vizinho britânico, aqui em frente. Costumava ir pescar ao rio levando uma caixa com larvas brancas que se contorciam – ele abriu a caixa para eu ver as larvas -  são de mosca, diz-me. As larvas parecem enormes para serem de mosca. Os peixes adoram isto, justifica-se (talvez eu tenha torcido o nariz às larvas sem querer), é o isco. John, vamos supor que se chama John, voltou no princípio do verão para o reino unido dele, depois de mais de duas décadas cá. Encontrei trabalho lá, explicou, e aqui só em Sintra, mas Sintra é muito longe. As casas estão, agora, todas vazias. John deixou ficar o carro, talvez pense voltar. Olho o carro de vez em quando. Penso que assim estou a tomar conta dele, um bocadinho: ser boa vizinha. Ou então para o carro não morrer aqui, também ele, como as casas, arruinado. A capota é de lona e já tem um rasgo, alguém o fez com uma faca, o vento não foi.

Mas nem tudo é triste. Há muitas castanhas no chão, fazem grandes tapetes de ouriços. Há muitos figos nas figueiras (ainda) que se podem colher. Há uvas nas videiras querendo talvez ser pisadas, subir a vinho, há tangerinas, há marmelos. Há esta vontade minha de escrever isto. Como se fosse para fazer viver a pequena aldeia que parece não querer morrer. De linda que é.

23 comentários:

  1. árvores cheias e eu com tanta vontade guardada de as trepar :) é como se diz, nozes a quem nã tem dentes :)

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    1. Manel, se trepasses estas podias até encontrar a árvore já ocupada pro uma... marta, quando não por uma coruja. Lá habitadas são, as árvores. :-)

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  2. Uma aldeia vazia de gente, como muitas do nosso interior, mas cheia de beleza e muito viva nas palavras deste escrito.

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    1. É absurda a quantidade de casas devolutas, a maioria à venda, há anos. E tudo tão belo em redor, luisa.
      :-)

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    1. Obrigada, Cuca. E esta até tem nome, já não lhe falta tudo :-))

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  4. Agora deixaste-me com lágrimas nos olhos, Susana. Mesmo.

    Vai daqui um abraço para a pessoa que escreveu esta homenagem à linda aldeia que parece estar a agarrar-se à vida com unhas e dentes e a espalhar os seus frutos por aí.

    Uma boa semana para ti.

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    1. É triste, pois é. Lugares tão bonitos, oferecendo tanto produto natural e tão vazios de gente.
      E os centros comerciais tão feios e tão cheios. Curioso, não é?

      Uma boa semana para ti também, Cláudia. :-)

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  5. “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
    Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
    Porque eu sou do tamanho do que vejo
    E não do tamanho da minha altura...”

    Alberto Caeiro

    É muito grande a tua aldeia, querida Susana.

    Um beijinho :)

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    1. Pelo menos espaço não lhe falta. Nem céu, nem sol, nem bichos. E Alberto Caeiro fica cá tão bem.

      Outro beijinho, querida Miss Smile :-)

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    2. Foste tu que a encheste de beleza :)

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    3. Ah, Miss Smile, eu vejo a beleza, isso sim. :-)

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  6. as aldeias estão a morrer, mas ficam perpetuadas sempre que há registo de passagem de alguém que as encarna.
    beijinho e boa semana, Susana.

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    1. Mas sabes, Mia, há uma nova vaga de gente a repovoar, sobretudo gente de além-fronteiras, mas há.

      Outro beijinho, Mia, e uma boa semana para ti também.

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  7. E eu que tanto gostava de ter uma aldeia!
    ~CC~

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    1. Mas CC, aqui há muitas muitas que de certeza gostariam de te ter a ti. :-)

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  8. ..Mas é que é por dentro que tudo temos. Com a vantagem de não haver sumiços ou desencontros. Eu, por exemplo, já tenho várias aldeias, sou rica de tê-las assim neste modo desprendido de serem tão minhas como não.
    Gostei do texto, sim.

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    1. É fácil criar laços com estes locais abandonados, restos de histórias que se leem nas partes quebradas do que resta. Tornam-se de facto nossos.
      Uma boa semana, bea :-)

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  9. as coisas que nós gostamos e que são belas nunca morrem :)

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  10. É uma aldeia a sul de Lisboa ou a Norte?
    Se for a sul e quiser contar-me mais envio-lhe o meu mail para me escrever, caso possa e queira. Mas a Norte não posso, ficaria longe de mais para combinar com a vida que tenho. É que estou a falar mesmo a sério, tenho vindo a procurar uma casinha numa aldeia ou próximo de uma, não gostaria de um lugar muito isolado, o que a sul é mais díficil.
    ~CC~

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    1. Ah, CC, que pena. Esta fica a 200 km a Norte de Lisboa. Esta e muitas outras, há centenas de casas mais ou menos arruinadas à venda. É um bocado longe para mim também mas, em chegando, compensa. :-)
      (há uma zona no Alentejo que eu acho linda, embora agora seja palco de festivais de verão e isso para mim já não dava... é em torno da Barragem de Póvoa e Meadas.)

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    2. Obrigada Susana, há muitas zonas bonitas no Alentejo mas os preços...sempre excessivos. Ainda assim, continuarei a procurar. Guarde bem a sua aldeia e oxalá as casas se vão voltando a encher de gente. Um beijinho
      ~CC~

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