a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/12/2013

Instalações mínimas

Vivo uma grande fatia do meu dia, seja ele qual for, dentro do carro.

Isto há-de acabar, mas por enquanto temos de continuar com histórias destas no blogue. Blogue, já agora, ao qual me dedico em momentos destes, dourados, em que me encontro fora do veículo.

Parei, então, como prometido, debaixo da cancela. Um radioso dia de trabalho pela frente.

- Bom dia!

- Bom dia, menina.

- Aqueles vasos coloridos são seus, senhor Manuel?

- São sim menina. Eles estavam ali junto à parede do edifício - escusa-se o senhor Manuel com um sorriso ligeiramente comprometido - mas apanhavam pingas do ar condicionado e agora com o frio o melhor é pô-los aqui, sempre apanham mais sol.

- São muito bonitos, - digo eu, não vá o senhor Manuel ver uma crítica velada nas minhas perguntas - aqueles ali, amarelos, e os outros, laranjinhas, são pimentos, não são?

- São sim menina, eu gosto muito disto, sabe - encolheu os ombros e voltou a sorrir comprometido e depois continuou, encorajado pelos meus óculos escuros, acho eu, que lhe inspiram confiança ou coisa assim - mas esses são valentes, esses pimentos. Ardem!...

- Ardem-lhe nos dedos, é? - eu a lembrar-me dos ardores que se me colam aos dedos depois de cortar pimentinhos para o almoço, ou o jantar, tanto faz, eles ardem sempre.

- Não não, ardem-me na língua! Ando aí a tratar deles e depois levo as mãos à boca, à hora do almoço, são valentes, ardem bem, aqueles!

Matei, portanto, a curiosidade.

O senhor Manuel não come os pimentos.

O senhor Manuel trata dos pimentos durante a manhã.

O senhor Manuel, quando lava as mãos antes do almoço, vamos acreditar que sim, está bem?, não o faz como manda o cartaz do cuidado com a gripe A, que já se foi embora mas a malta esqueceu-se de tirar os cartazes lave-as-mãos-durante-vinte-minutos-e-esfregue-as-em-movimentos-circulares-assim-e-assim-até-que-lhe-doa-a-pele, porque a contaminação dos pimentos não sai e, devido aos movimentos incautos, chega-lhe à língua.

Estacionei o carro a pensar que se toda a gente lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, a produtividade dos portugueses seria uma vergonha e as filas nas casas de banho piores do que a da ala das senhoras antes de começar a ópera no São Carlos, que por ter sido erigido nos finais do século dezoito, altura em que poucas senhoras iam à ópera, estou eu em crer, ficaram-se por instalações mínimas.

Quanto a mim, se lavasse as mãos como manda o cartaz da gripe A, não passaria tanto do meu tempo dentro do carro.

Sempre ficava mais económico.

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