Desta vez
consegui a proeza de estar mais de dois dias seguidos no mesmo sítio e portanto
o acontecimento pôr-o-bacalhau-de-molho fez enfim parte do meu natal.
No entanto, nem
tudo foram rosas. Embora o bacalhau tenha apreciado o banho de quarenta e oito
horas que lhe tornou a existência mais insossa, foi um sarilho convencê-lo a
manter-se na água quente, muito quente, a ferver. Ou seja, o safado veio
parar-nos ao prato um tanto ou quanto encruado e nem o azeite disfarçou.
Felizmente o
natal é época para o perdão se sentar à mesa com a família e com
o bacalhau encruado, e eu, sorte a minha, fui perdoada. A minha gente ficou ou
mais mole, ou mais tolerante, ou mais lacrimejante, se for o caso, ou ainda uma
combinação destas.
Quanto a mim, os desígnios
divinos escolheram-me para a equipa dos ficou-mais-mole.
E isto tem
consequências.
As minhas
adolescentes filhas, entusiasmadas com a condição súbita de ficou-mais-mole da
sua mãe, puseram, de mansinho, o pé do lado de lá do risco das regras,
traçado fora da época mole, em momentos em que a lucidez esteve comigo.
Ora nas condições
sazonais que em mim se instalaram estes dias, em que a minha visão se tornou turva,
cobriu-se de nevoeiro, amolecida pela lareira, pelos brilhos vermelhos e dourados,
pelos abraços da minha mãe que cheira sempre bem e pelo sorriso doce do meu pai
que no natal fica menino e fica tão lindo, distraí-me.
Só passadas as
primeiras horas, depois de os abraços da minha mãe terem ido para casa, do
olhar doce do meu pai também, da minha vasta irmandade ter recolhido a
respectiva criançada de volta aos lares, é que eu, devagarinho, retomei a minha
vista apurada, deixei a moleza ir com eles todos, semi-cerrei os olhos e vi.
Vi a adolescência
das crianças que trouxe ao mundo posicionada muito para além do tal risco que
entretanto sacudiu a névoa e se mostrou tão nítido e o efeito desta causa foi
uma zanga muito mal vinda, que eu não gosto de zangas nenhumas.
E agora, na
condição de zangada, tenho de me segurar, manter a postura, não mostrar o amor
que me brota a jorros, as palavras que querem ser doces, os abraços que me
morrem no corpo que sinto atrofiado, e olho de soslaio para elas e vejo como
são lindas, e lhes vejo as feições doces, perfeitas, os contornos das sobrancelhas,
os narizes bem desenhados, amores da minha vida, que fiz eu que estou
aprisionada no meu coração quase a rebentar, e agora.
Meti-as no carro,
precisamos de comprar parafusos, o Erik vai tratar do assunto que eu com a
broca não sou grande coisa, nem isso nem cozer bacalhau.
Debaixo da chuva
miudinha na modorra da tarde, rumámos a Miranda do Corvo.
Quando contorno a
rotunda que tem um cabeleireiro a anunciar na montra “dinâmicas e
deslumbrantes”, ou coisa que o valha, já elas dormem no banco de trás, uma a
cair para cima da outra.
E eu, então, páro
o carro. Erik sai para comprar os parafusos, não no cabeleireiro, na grande
loja de ferragens. Olho-as pelo espelho retrovisor. A beleza delas que aos meus
olhos é tanta, o veludo de que se lhes faz a pele, o desenho do início dos seus
cabelos ondulados, que lindos cabelos têm as minhas filhas, o contorno dos
olhos fechados, o ar angelical que só lhes vem no sono.
Na loja de
parafusos havia muita gente para atender e a chuva miudinha da tarde teve tempo
de vir até mim.
E começar a cair dos meus olhos como se eles fossem as nuvens do céu.
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