a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/12/2013

Nuvens do céu

Desta vez consegui a proeza de estar mais de dois dias seguidos no mesmo sítio e portanto o acontecimento pôr-o-bacalhau-de-molho fez enfim parte do meu natal.

No entanto, nem tudo foram rosas. Embora o bacalhau tenha apreciado o banho de quarenta e oito horas que lhe tornou a existência mais insossa, foi um sarilho convencê-lo a manter-se na água quente, muito quente, a ferver. Ou seja, o safado veio parar-nos ao prato um tanto ou quanto encruado e nem o azeite disfarçou.

Felizmente o natal é época para o perdão se sentar à mesa com a família e com o bacalhau encruado, e eu, sorte a minha, fui perdoada. A minha gente ficou ou mais mole, ou mais tolerante, ou mais lacrimejante, se for o caso, ou ainda uma combinação destas.

Quanto a mim, os desígnios divinos escolheram-me para a equipa dos ficou-mais-mole.

E isto tem consequências.

As minhas adolescentes filhas, entusiasmadas com a condição súbita de ficou-mais-mole da sua mãe, puseram, de mansinho, o pé do lado de lá do risco das regras, traçado fora da época mole, em momentos em que a lucidez esteve comigo.

Ora nas condições sazonais que em mim se instalaram estes dias, em que a minha visão se tornou turva, cobriu-se de nevoeiro, amolecida pela lareira, pelos brilhos vermelhos e dourados, pelos abraços da minha mãe que cheira sempre bem e pelo sorriso doce do meu pai que no natal fica menino e fica tão lindo, distraí-me.

Só passadas as primeiras horas, depois de os abraços da minha mãe terem ido para casa, do olhar doce do meu pai também, da minha vasta irmandade ter recolhido a respectiva criançada de volta aos lares, é que eu, devagarinho, retomei a minha vista apurada, deixei a moleza ir com eles todos, semi-cerrei os olhos e vi.

Vi a adolescência das crianças que trouxe ao mundo posicionada muito para além do tal risco que entretanto sacudiu a névoa e se mostrou tão nítido e o efeito desta causa foi uma zanga muito mal vinda, que eu não gosto de zangas nenhumas.

E agora, na condição de zangada, tenho de me segurar, manter a postura, não mostrar o amor que me brota a jorros, as palavras que querem ser doces, os abraços que me morrem no corpo que sinto atrofiado, e olho de soslaio para elas e vejo como são lindas, e lhes vejo as feições doces, perfeitas, os contornos das sobrancelhas, os narizes bem desenhados, amores da minha vida, que fiz eu que estou aprisionada no meu coração quase a rebentar, e agora.

Meti-as no carro, precisamos de comprar parafusos, o Erik vai tratar do assunto que eu com a broca não sou grande coisa, nem isso nem cozer bacalhau.

Debaixo da chuva miudinha na modorra da tarde, rumámos a Miranda do Corvo.

Quando contorno a rotunda que tem um cabeleireiro a anunciar na montra “dinâmicas e deslumbrantes”, ou coisa que o valha, já elas dormem no banco de trás, uma a cair para cima da outra.

E eu, então, páro o carro. Erik sai para comprar os parafusos, não no cabeleireiro, na grande loja de ferragens. Olho-as pelo espelho retrovisor. A beleza delas que aos meus olhos é tanta, o veludo de que se lhes faz a pele, o desenho do início dos seus cabelos ondulados, que lindos cabelos têm as minhas filhas, o contorno dos olhos fechados, o ar angelical que só lhes vem no sono.

Na loja de parafusos havia muita gente para atender e a chuva miudinha da tarde teve tempo de vir até mim.

E começar a cair dos meus olhos como se eles fossem as nuvens do céu.

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