Escapei por dez centímetros.
São dezanove e vinte e seis e eu ainda em casa a vestir as calças de fato de treino para ir à ginástica, aos saltos numa perna, depois na outra, já está, agora vai de calçar os ténis a enfiar um pé de cada vez e a torcê-lo para a direita e para a esquerda a ver se entra sem mais ajuda, que estou atrasada. É a última aula de ginástica antes de começar a encher a pança de natal, chocolates vêm à frente, uma ou outra noz enfiada num figo, os fritos no fim da linha, mas não hão-de escapar e, claro, o bolo rei que a minha irmã Catarina vai fazer na bimby (detesto a bimby, tenham lá paciência, mas isso fica para outro post, que este já vai encher).
São dezanove e vinte e oito e eu começo a atravessar a rua, o ginásio fica já ali no quartel dos bombeiros.
O opel corsa, daqueles antigos mas não dos mais antigos, parece que me viu no meu blusão branco como a neve, mas afinal não viu, não parou na passadeira, e eu a olhar para as luzinhas nas folhas que caíram das árvores com o vendaval recente e estiveram a chorar o dia todo e, agora que a noite também caiu mas penso que não se magoou, ao contrário das folhas, coitadinhas, que brilham à brava, são as lágrimas delas a reflectir a luz dos faróis do opel corsa (não sei se ponha opel corsa em itálico, ponho?).
Foram os dez centímetros a manterem-me fora do alcance do opel, que não me colheu. Dei um salto para a frente a ver se os dez passavam a decímetros e depois a metros o mais depressa possível e neste salto de corça assustada, não corsa, mas corça, e graciosa, olho para trás, mas que é isto.
E vejo o braço do condutor a acenar, desculpa lá amiga, que eu ia distraído. Esta do amiga não percebi, mas ficou-lhe bem pedir desculpa.
Continuo a caminhada até ao ginásio, viva da silva mas a tremer, e entro no edifício que parece ter espetada a torre dos bombeiros, enfeitada com luzes azul eléctrico para celebrar a época natalícia, apesar de o natal ficar mal de azul, mas isso não interessa nada para quem acabou de evitar o aborrecimento do tinoni de uma ambulância que havia de sair deste quartel. Isto, claro, se o óbito não se desse ali mesmo em cima das folhas e das luzinhas que elas fazem com as lágrimas.
Entro no edifício, era aqui que íamos, é que me estou a desviar muito hoje, e vejo que sou a única ginasta a comparecer à sessão, facto que leva a treinadora a pôr-me em cima da máquina do programa dos tremeliques. Faz-lhe bem, diz ela.
E faz. Que eu depois de ter escapado ao corsa estou por tudo, já vinha a tremer e agora tremo mais um bocado e com toda a força.
Sempre posso acabar o relatório amanhã, ir meter a carta para a Epal no correio, arranjar uma desculpa qualquer para me safar do almoço de natal da empresa e vir para casa meter-me num banho de imersão que é coisa que não faço há vários.
Natais.
E, mana, o teu bolo rei vai-me saber que nem ginjas, está bem? Afinal acho que gosto um bocadinho mais da bimby, nunca me fez saltar, ainda que com graciosidade, nem ficar a tremer, ainda que me faça bem.
(e só por isso a bimby merece o itálico)
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