a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

23/12/2013

Zero zero sete

Lá fora o vento uiva com a potência de uma alcateia e a chuva anda doida a cair em todo o lado, não sabe de que terra é e a velha palmeira está muito agitada, nunca a vi assim.

Dentro, a televisão passa um filme do zero zero sete mas eu estou no canto oposto à lareira, junto à janela, por causa dos uivos dos lobos. Do vento, perdão, do vento. Mas uivos na mesma e eu não os quero perder.

(agora conseguiu o zero zero sete, com um camiãozinho de nada, impedir um avião dos grandes, pelo menos é o que me parece, visto daqui, de descolar)

A aldeia está quase deserta, as casas estão abandonadas há muito, a maioria em ruínas, outras em projecto de ruína. Só três ou quatro já renasceram das pedras e agora vestem-se de um charme rústico, vaidosas que dá gosto. Pelas chaminés lançam fumaça que mostram às vizinhas e que cheira tão bem.

Hoje, durante todo o dia, passaram três carros aqui na rua, a única da aldeia. Um deles apanhou-me à porta a sacudir a toalha das migalhas do pequeno almoço e parou.
  
O vidro da janela começa a descer, em solavancos tímidos, resposta ao manípulo que gira em círculos e me deixa ver agora o lenço na cabeça da sua ocupante, a testa, depois a cabeça toda, devagar, dobro a toalha, e agora o seu semblante, inquiridor. Sentada ao lado do marido, que conduz, os maridos é que conduzem, lança-me os bons dias, vizinha. E anuncia.

- Passamos aqui todos os sábados, temos queijinho fresco, feito em casa, em nossa casa, e queijo também do outro, seco, temos ovos das nossas galinhas e cozemos pão. É tudo fresquinho.

O marido olha-me espetando o pescoço, que não é comprido, para secundar o que a sua mulher me desfia e faz que sim, é isso, queijinho fresco, pois.

(o zero zero sete está agora a descansar com uma senhora que se deitou em cima dele, e com uma bebida, acho que a vai entornar, e eu oiço melhor os uivos do vento)

Agradeci com uma vaga promessa de sim senhora, um destes sábados, é questão de ir passando e nós estarmos cá, gostamos muito de queijo. E um feliz natal para os senhores, sim?

Mas e o vento, que continua furioso lá fora? Esta noite, que o abraça com o seu manto negro (ei! de onde tirei eu isto tão bonito?), quer deitar a velha palmeira ao chão, quer quer.

E tomar da chuva a bebida, que já entornou por toda a serra, para depois descansar dos uivos. 

Mas eu, que estou a ficar com frio, vou-me chegar à lareira e ver como acaba o filme.

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