a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/05/2014

Cicatrizes

A chinesa pequenina tem os olhos molhados. Parece que chora. Está na fila do aeroporto e está uma volta da serpentina de gente que se aproxima da zona de controlo de bagagem de mão, atrás de mim.

Há minutos, quando a fila ainda escoava, ora estamos de frente, ora de costas, em serpentina acomoda-se a gente melhor, ela teclava no vidro do seu aparelho de comunicações com as unhas capeadas a gel (deve ser isto o gel embora pareça plástico duro). Quase choca com o passageiro da frente quando ele pára, paramos todos, a funcionária do controlo de metais e líquidos que as pessoas levam para os aviões fechou a passagem com a cinta de extremidade embutida na peça de plástico que encaixa no pequeno poste cilíndrico.

São 19h52 e nos altifalantes anuncia-se, pela segunda vez desde que entrei no edifício, que às 20h00 se vai fazer dois minutos de silêncio pelos soldados mortos na segunda guerra mundial e já agora em todas as guerras.

É assim nos 4 de maio na Holanda. Leva-se a sério o dia de lembrar os que combateram na guerra, que no dia seguinte, o dia 5, é dia de festa, comemora-se a libertação dos Países Baixos pelas forças aliadas. Assinou-se acordo com os alemães e tudo. O fim da guerra deve ter sido, para quem a viveu, uma alegria cheia de dor a que a minha imaginação, por mais que estique, não chega.

A chinesa pequenina das unhas cor de rosa, que ainda está uma volta de serpentina atrás de mim, não percebe o evento iminente e pergunta ao passageiro da frente, o que é? Ele explica. Do outro lado, mais alguém pergunta e mais alguém explica. O bruaá vai diminuindo até se diluir em roçadelas de roupa e cliques de malas a pousar no chão. A chinesa pequenina guarda imediatamente o dispositivo em que estava a teclar e fica assim, absorta nunca saberei em que pensamentos da guerra onde o seu mundo não esteve. E parece que chora.

Os empregados antes distribuídos pelas diversas linhas de controle de metais alinham-se agora em frente ao mar de gente no qual me dissolvo.

Durante dois minutos o aeroporto de Amesterdão cristalizou num silêncio absoluto.

Depois, a chinesa pequenina desapareceu e não lhe vi mais as lágrimas. Queria chorar como ela, mas não soube como. Queria chorar por nós.

Por nós que não tivemos esta guerra, que não lambemos estas feridas e que não transportamos estas cicatrizes na alma.

Mas o que temos nós então?

Sem comentários:

Enviar um comentário