a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/05/2014

Milão

O atraso do meu voo não é problema.

Sento-me a uma mesa do aeroporto de Lisboa e desembrulho a sandes que comprei para acompanhar o sumo de cenoura que vou beber de uma vez por causa da sede.

Eu gosto de aeroportos. Nos aeroportos relaxo sempre, leio o que me apetece, fascino-me outra vez com os aviões lá fora quando os consigo ver nas manobras ou simplesmente deixo de existir e penduro-me nas pessoas que passam.

Foi o que aconteceu.

A sandes é má apesar de ter ovo cozido. Acho as sandes de ovo cozido muito bonitas, principalmente se vierem com várias folhas de alface exibindo a frescura do verde, mas esta só tem o ovo e umas coisas de cores mortiças que a fazem gorda. Azar o meu, tem também uma camada de sal que não vem na descrição impressa na etiqueta, deve ser oferta.

Portanto, observo as pessoas que passam, mastigo, penetro nelas com os olhos afiados e elas não sabem que existo. Aliás não existo. O sumo de cenoura compensa a sandes de sal com ovo cozido, mesmo assim se eu agora existisse não aguentava comer isto.

As que correm com o trolley às cambalhotas que ora poisa uma roda ora a outra e não se consegue equilibrar na posição para que foi desenhado, o casaco pendurado no braço, a esvoaçar, quando não com uma manga a varrer o chão, essas não contam, deixo-as em paz, não vá o meu olhar atrasá-las mais.

Mas as outras. Homens de pernas altas, esguios, as abas do casaco que lhes cai tão bem a abrir e a fechar à cadência do passo firme, capta-me a atenção este caminhar, o cabelo tanto faz. Mulheres que olham em frente, levam velocidade e os ombros direitos, os cabelos soltos mas arrumados, ondulam um pouco, que belas vão.

Da sandes sobrou o papel celofane e então levanto-me, deixo o tabuleiro no carro colector de tabuleiros e dirijo-me à zona relax-qualquer-coisa, a ver se o sol se põe à minha frente e os aviões me mostram silhuetas voadoras a poisar como passarinhos, ainda há que esperar.

Entro, enfim, no hall das portas de embarque de onde o meu voo há-de sair.

- Malpensa?

- Se eu... hã? Não, não, é para a zona de relaxe - e aponto as cadeiras viradas ao sol e à pista de aterragem.

A hospedeira de terra anda à procura de alguém que queria ir para Milão, que se chama Maria Inês, alguém que está a atrasar o voo e que não aparece. E achou que podia ser eu.

O atraso do meu voo não é problema.

Problema é uma pessoa andar pelos aeroportos a ensaiar passo firme, postura de quem sabe para onde vai por forma a ondular o cabelo na deslocação e destreza no manejar do trolley, tudo isto a ver se fica bonita, e quererem meter-nos assim, de repente, em qualquer avião.

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