Entrei perfeitamente na zona de desconforto que se estende
em frente ao balcão do peixe, com a senha de vez na mão, cinco números e uma
grande família de carapaus à minha frente (com os quais ensaio uma conversa,
são tão feios os carapaus).
Arrumadas como peças de dominó depois da queda global induzida pela primeira estão as douradas, cada uma esconde uma
fatia das costas da vizinha, mas deixa-lhe o olho vítreo à vista. Ao princípio
achei graça, isto é quase arte, pode dizer-se que é quase arte, mesmo com a
senha na mão e os cinco números que me separam da mordida no meu anzol.
O senhor que está a ser atendido era capaz de poder ser meu
pai à vontade e pede à menina que lhe
ponha uma dourada em cada saco se faz favor, tudo assim muito devagar e já no
momento em que ela lhe estendia os sacos com o aviamento feito. Mas estou a ficar com um frio impaciente e vejo que tenho
os pés dentro de uma poça de água suspeita que pinga do gelo do balcão, olha para isto. Desvio-me na
lateral, alinhando-me agora com os pargos que até são muito mais interessantes
que os carapaus. Sou capaz de considerar isto um upgrade. Para me entreter mais um pedaço, enquanto as douradas do
freguês consumam o divórcio, olho o número da minha vez na senha azul, não vá
eu ter visto mal, vi bem. Continuas o mesmo, não mudaste nada ó número (eu às
vezes parece que espero milagres).
- Quer que ponha também este em sacos separados? – a menina ergue o outro saco com postas de
peixe cuja linhagem não identifico e eu ai não. Isso não. Num virar de cabeça fulminante,
golpada rápida, ameaçadora, fito o senhor das douradas numa intenção absoluta de
o intimidar com os meus olhos em estado semicerrado e ele perceber que gente da
minha idade tem pouco tempo para nha nha nha, principalmente quando não se
consegue entreter mais com os pargos e deixou todos os livros em casa, todos.
- Sim, se faz favor, já agora – tom delico-doce, baço, o do já
agora, já agora???, mas para que quer ele este favor se não o quer muito e separar aquelas postas todas demora um tempão, what if you get a life, sir?
Mas eu tenho uma queda por gente mais velha e hoje é sábado, essa é que é a
verdade, de maneira que encaixei a impaciência num suspiro potente,
poeticamente capaz de fazer acordar toda a peixada e comecei a ponderar se não seria excelente ideia dar à Teresa, ao jantar, outra coisa que não robalo
fresco no forno.
Vou portanto a voltar-me, adeus robalos, quando a menina de repente, pressionando um botão
que faz ouvir-se um tilim igual ao da
repartição das finanças, dezoito, dezanove, vinte, tudo de seguida, afinal os
fregueses intermédios tinham ido ao pão, ou à fruta, vinte e um, os
que aqui estão devem ter chegado durante as conversas com os carapaus, vinte
e dois, sou eu.
Sou eu e vou continuar a esperar milagres, pois vou.
Hahahahahahahahah.
ResponderEliminarCabeça a tua não veres onde pões os pés, sobretudo na peixaria Susana. Foste o vinte e um, tiveste sorte, olha se fosses o quarenta e oito? Terias de levar as galochas que se derretia o gelo todo do alto mar mesmo em cima dos teus pézinhos.
Eu não vejo onde ponho os pés, realmente, e para além disso vou ao supermercado errado. A avaliar pelo tempo que lá passo, até parece que gosto.
EliminarAs galochas são uma excelente ideia e sempre dão aquele estilo, sei lá, único. :-)
Os carapaus são feios? Mas sendo o carapau um peixe azul (alguns deles, pelo menos), o que lhe pode faltar em beleza sobra-lhes em benefícios, a saber:
ResponderEliminar(cito a informação da indispensável ACOPE)
* são um alimento de fácil digestão e baixo em calorias;
* contém proteínas com diversos aminoácidos fundamentais ao organismo;
* são rico em vitaminas A, D e B12, essenciais à visão, pele, absorção de cálcio e fósforo e ao metabolismo do corpo;
* tem minerais como o cálcio, necessário aos dentes e ossos, e fósforo, essencial para o cérebro;
Tendo reposto algum mérito ao dito Trachurus trachurus resta-me desejar um óptimo domingo, cara Susana :)
Isso do carapau ser azul é que tenha paciência, senhor doutor Xilre. Eles costumam ser todos muitos cinzentos e com aquela espinha espalmada a todo o comprimento. Nada bonito. E para além disso, carapau que é carapau não tem sabor nenhum.
EliminarMas vá lá que tem isso tudo para oferecer, pois tem. Admito que tem (coitadinho do carapau).
Boa noite e boa semana, caro Xilre. :-)
Na verdade, o Truchaurus Trucharus, carapau branco para os amigos, é mais clarinho. O que refere, mais cinzento, é o Truchaurus Picturatus, também conhecido como carapau negrão. :) Vão bem ambos, com um molhinho de escabeche. :)
EliminarE é por ser para os amigos que o pobre Trachurus trachurus de ontem para hoje mudou ligeiramente o nome e perdeu o itálico, o pobrezinho, é?
EliminarBem, como falou em escabeche, passa. Eu de escabeche gosto muito, mas acho que só provei com sardinhas, essas sim, são deliciosas e vêm todas da mesma cor, o que nos poupa aqui imensa tinta em comentários, não acha? (ufa)
Boa noite, caro Xilre! :-)
Afinal, foi um desfecho rápido.
ResponderEliminarBom jantar, Susana.
Beijos. :)
Pois foi, quando decidi desistir foi rápido. :-)
EliminarBeijos, Maria, obrigada.
A maneira como os senhores do supermercado dispõem o peixe chega a ser uma arte. Também já dei por mim a embasbacar para o exposto e a pensar se não seria mais adequado dispô-los de olhos fechados ou com a cabeça cortada. A mim, faz-me uma grande impressão olhá-los nos olhos.
ResponderEliminarA ver se terça encontro algo do Nilo...
Acho que não dá para fechar os olhos aos peixes, mas que é uma boa questão, é.
EliminarTal como o teu comentário, que adorei ler, querida Homónima. (não sei porquê, não te fazia ao balcão da peixaria)
Boa semana e boa sorte na terça. :-)