Encostada às lombadas dos livros que em pilha e muito quietinhos
comigo dormem, está uma fotografia da avó Irene. É uma fotografia pequenina, a
preto e branco, e mostra um rosto que não sorri. Vela-me o sono, apazigua-me as
ansiedades que, em várias cores pontiagudas, me ferem a respiração enquanto estão
as insónias a cavalgar-me por cima das horas, mais e mais, uma pena serem insónias.
No verso da capa do único cêdê que tenho da Edith Piaf está,
em letras pequeninas, o resumo da sua história de vida. Uma história demasiado
triste para ter pertencido a uma pessoa só. A Edith Piaf nunca veio a saber,
mas a minha avó Amália gostava muito dela. Mandava-nos calar, meninas
estejam sossegadas, porque detestava o barulho que as nossas correrias da casa
de férias faziam, precisamente quando ela queria ouvir a Edith Piaf, meninas, é
a Edith Piaf! La vie en Rose para nós
naquele tempo, nós é que não sabíamos, corríamos dali para fora, que seca, avó,
isso é francês?!
A avó Irene estava sempre em casa e usava casacos de lã com
bolsos onde guardava um lencinho, ela é que dizia lencinho; era a sua companhia,
punha a mão no bolso e apertava o lencinho sem ninguém ver, se calhava alguma
coisa lhe ensombrar o dia. Quando estiveres na cadeira do dentista, dizia-me, e
se tiveres um lencinho, aperta-o com força para não te doer (como me esquecia do
lencinho, experimentei apertar uma mão com a outra mas doeu sempre). Tricotei-lhe
dois casacos no fim do tempo dela, primeiro um cinzento e depois um verde
escuro, ambos a abotoar à frente e sem me esquecer dos bolsos para os apertos
secretos ao lencinho. Usava-os sempre, excepto no verão, que foi só um.
A avó Amália sabia tudo sobre como se deve estar à mesa, nunca
se põe a faca na boca e sorver a sopa é completamente proibido, nem que tenham
de queimar a língua. Com o guardanapo faz-se assim assim, só nos cantos da boca
e ao redor dos lábios, sem esfregar, para não esborratar o batom, mas nós não
usávamos batom e queríamos sair da mesa para ir fazer corridas de bicicleta. Era
isto a todas as refeições das férias e nós, ó avó que seca. Tocava piano com os
seus dedos longos e as unhas sempre pintadas de vermelho, tinha mãos bonitas.
Na mala trazia um espelho pequenino, um batom a condizer com as unhas e um
pacotinho de Chiclets amarelo, que
durava uns seis meses quando escapava aos nossos ataques. Mandava-nos ler os
livros da Pearl Buck e caminhar com as costas direitas como se tivéssemos
engolido uma vassoura, mas eu lia os da Agatha Christie e ela dizia está bem,
filha. Usava echarpes para tapar o pescoço porque uma mulher mostra a idade é
no pescoço e ela não queria ser velha.
Quando a seguir trouxe para casa o corpo suado e dorido, fui
directa ao duche sem tirar o sorriso da alma que ao dançar apanhei. Depois programei a máquina da roupa para lavar na tarifa de vazio enquanto durmo e a da loiça a mesma coisa e quase me esquecia de comer.
(tal como me esqueci
de ler os livros da Pearl Buck, mas já me vou lembrando de olhar para o meu
pescoço)
Hoje, dei por mim a tapar o pescoço com uma écharpe. Bolas!
ResponderEliminarBeijos, Susana. :)
Mas tu é pelo estilo e não por necessidade, tenho a certeza (a avaliar pelo que mostra a tua foto, essa aí)...
ResponderEliminarBeijos, Maria. :-)
Querida Susana,
ResponderEliminarBonito texto. "Uma história demasiado triste para ter pertencido a uma pessoa só", bestial.
Beijo,
Outro Ente.
Muito obrigada, caro Ente. :-)
EliminarBestial é podermos viver com um grau de tristeza não mais que moderado.
Outro beijo.
Susana, já sabes, não é novidade nenhuma que gosto dos teus rendilhados de letras, mas, às vezes, tocas-me a alma.
ResponderEliminarBeijinhos, Susana.
Rendilhados de letras! :-)
EliminarTu tens uma alma muito bonita, por aquilo que já vi de ti. Ter conseguido tocá-la dá-me muita alegria.
Obrigada, querida Cláudia.
A tua avó Amália sabia das coisas.
ResponderEliminarPois sabia, Cuca. Eu é que não sabia que ela sabia.
EliminarOlá, Susana,
ResponderEliminarUma avó que ouvia Edith Piaf; usava batom e com seus dedos de unhas pintadas de vermelho tocava piano, e que ainda inspirou uma prosa destas, não era uma avó: era uma deusa que nunca devia ter deixado de ser. Emocionei-me, como me emociono e emocionarei sempre com estas vivências que o tempo transforma em lembranças entranhadas em nós.
Ao menos, valha-nos isso! que resultem em textos sublimes como este. Lindo.
bj amg
Querida Carmem, para receber comentários como este seu, já vale a pena ter um blogue.
EliminarMuito obrigada. Do coração.
Um beijo.
São textos assim que me deixam sempre um travo amargo por não ter tido avós assim.
ResponderEliminarDesculpa ter-te provocado esse travo amargo. Eu tive avós bons demais, por isso lhes sinto tanto a falta.
Eliminarum beijo, Carla.