a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

06/04/2015

Anúncio de televisão

Vou a conduzir pela auto-estrada de janelas fechadas ao sol neste domingo de páscoa quando de repente percebo, com tremores no pescoço, que me sinto um iogurte.

- Sinto-me um iogurte.

Dos de beber e de morango. O vento frio, embalado em vácuo talvez não, mas rico em bactérias provenientes de todo um espectro, lufadas potentes de ar muito fresco, condicionado, é-me hostil.

(escrevi este post ontem mas não o consegui fazer passar no crivo)

Mesmo que fosse uma garrafa de vinho branco por abrir, pedindo gambas cozidas à mesa, não melhorava imenso a situação refrigerada em que me encontro. 

Perguntei-me porquê um iogurte.

- Porquê um iogurte?

(portanto regressei para dar uns safanões ao post, depois dar-lhe colo)

E sou atingida em cheio, uma vez mais, pelas palavras lidas como se fossem fáceis, uma flor de cultura resistente, talhada para sair assim, previsível, calibrada, pronta para um enjarramento de muitos dias sem espinhas. Mas não. Ficaram-me às voltas, as palavras, a quererem meter-se na minha vida, a rirem-se de mim, toma toma, querem enfiar a ideia que trazem num canto meu, de aprendizagens fáceis, algodãozinho tão doce, impossível. Estas palavras que colhi silvestres não se aconchegam em jarras, vivem no campo de rosas com espinhos, estão aqui, na morada que se lê a seguir:

 “Quem não tem dentro de si alguma tristeza e solidão não é gente. É personagem de anúncio de televisão.” (in Ana de Amsterdam, Ana Cássia Rebelo, Quetzal, pág. 128)

Depois suspirei, desejei arrumar depressa isto, é medo. Medo de caber num anúncio de televisão. Perder espessura ou abandonar a existência, coisa assim muito feia. Desliguei o ar condicionado.

Retomei o meu calor devagar, ao sol deste domingo de páscoa, e voltei a sentir a solidão. E com ela, embrulhado no brilho da tarde, um pedacito de tristeza. Ufa.

(o post passou, apesar do enjarramento ali de cima, passou; agora vai ser feliz para sempre)

8 comentários:

  1. Eu nunca serei personagem de anúncio de televisão. Mas não me sinto mal por ser assim.

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    1. Acho que até te deves sentir muito bem por não seres personagem de anúncio de televisão. :-)
      (embora quem o seja também talvez se sinta bem assim, numa vida de plástico com sorrisos fictícios)

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  2. Não resisto a deixar-lhe aqui o poema do Namora.

    «Aqui ao meu lado o bom cidadão

    escolheu Sagres

    que é tudo tudo cerveja

    a pausa que refresca

    a longa pausa de um longo cigarro King Size.


    atenção ao marketing.


    Eu não gosto de cerveja

    mas tenho que gostar que os outros gostem de cerveja

    sobretudo da Sagres

    para não contrariar os fabricantes de cerveja.


    atenção ao marketing.


    Ninguém contraria os fabricantes de cerveja

    ninguém contraria os fabricantes da Opel e da Super Silver

    nem os fabricantes de alcatifas para panaceias

    nem as panaceias nem os códigos e os edredons macios

    nem as mensagens de Natal dos estadistas

    nem os negociantes de armas da Suiça

    nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive

    Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma

    a ver as procissões passar mesmo sem anjos mesmo sem anjos

    que são agora selvagens e voam numa Harley.»


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    1. Querida G., não é todos os dias que se recebe um poema e eu, olha, nem sou muito merecedora de poesia, porque tenho cabeça dura para ela (a poesia), ando em treinos, isso ando.
      Mas, claro, deste poema doido gostei muito. Fez-me sorrir o tempo todo e ter vontade de me deitar no Lusospuma em vez de ir para a aula de dança. :-)
      Muito obrigada.

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  3. Porquê um iogurte? Toda a gente sabe que os iogurtes são as novas lâmpadas de Aladino. Têm gênios lá dentro

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    1. Claro Cuca, isso mesmo. E os génios saem e concedem-nos desejos. O meu foi cumprido: não ser personagem de anúncio de televisão.

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  4. Há dias assim, de iogurte. Líquidos e frescos. Também há outros dias. Dias doces, de chocolate quente. São dias de gente absolutamente normal, que varia de bebida conforme lhe apetece. :)

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    1. E se não fosse haver dias para todas as bebidas, provavelmente vivíamos a preto e branco e tu não podias mostrar quão lindas são as flores que fotografas. As flores e tudo. :-)

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