Chego a casa tarde e não está ninguém, tiro os sapatos e o
casaco e vou para a cozinha. Acendo a televisão que me informa que é o último
programa com o Nuno Morais Sarmento, despedidas hoje não, apago-a,
adeus Nuno. Abro uma garrafa de vinho branco que tem passado bem no frigorífico,
é um dos meus favoritos, a uva moscatel torna-o mais doce, precisamente um
vinho quente estando fresco. Deixo deslizar este suco viscoso para dentro de um
copo de pé alto, só bebo vinho em copos de pé alto esteja quem estiver ou não
esteja ninguém, trata-se de uma espécie de religião, seguindo-se o alho francês
e o pimento vermelho que corto devagar em rodelas e tiras finas,
respectivamente. Nestes formatos último grito, grito não, suspiro, deito-os para a frigideira ansiosa, prometi-lhe festa, previamente revestida de fios de azeite a fazer desenhos que me lembram o teu rosto no final de uma tarde, podia ser esta, a sorrir para mim, fios
que se desprenderam, espreguiçando-se, da pele interior da garrafa quando a segurei com o gargalo para baixo. O vidro é material
que parecendo frio já conheceu um calor igual ao nosso, por isso caiu o azeite num
murmúrio grave no fundo com revestimento de fábrica a aquecer de
prazer, digo eu de prazer. Salteados, estes dois frutos da bela natureza enlaçam-se num
contraste que já encheu a cozinha com o aroma esperado. Cozo meia chávena de arroz
basmati que mesmo perfeitamente em Lisboa, com o rio ali a ver, me vai saber a oriente, solto. Para acompanhar o vinho e enquanto os legumes se deixam
levar, cegos de luxúria estimulada pela espátula de madeira com que os revolvo,
deito algumas amêndoas salgadas numa taça, para trincar ao som
crepitante das cores que, suculentas, trocam fluidos quentes à vontade. Penso que estamos a ver.
Quando o arroz fica pronto, escorro a água excedente. Os
grãos destinam-se, em massa, a servir de manto cobridor dos vegetais al dente. Por cima vieram juntar-se suavemente, como neve a soltar-se da minha faca afiada, algumas tiras de fiambre
fino para acabar uma embalagem ainda dentro do prazo e ao lado estrelei um ovo
sozinho. Preparo o prato por forma a que as cores se disponham em arranjo de paixão, e os meus olhos começam.
Para terminar, sento-me a comer e a ler. Entalo o livro aberto
debaixo do bordo do prato, mas penso em ti e apetecia-me ouvir Wagner.
(aquela pequena inspiração de literatura arrancada com os dentes, a que chamei arranjo de paixão, foi bebida aqui)
Ontem lembrei-me dele, e agora, ao reler-lhe os últimos textos, talvez entenda a razão. Se puder, leia-o, combina com a sua escrita. Chama-se "Livro de receitas para mulheres tristes"
ResponderEliminarDeixo-lhe uma pitada que pode ser encontrada na net:
«Se um dia você adoecer de palavras, coisa que acontece com todo mundo, e ficar farta de ouvi‑las, de dizê‑las; se qualquer uma que escolher lhe parecer gasta, sem brilho, deficiente; se sentir náusea ao ouvir um “horrível” ou “divino” sobre qualquer assunto, não será com uma sopa de letras, claro, que vai se curar.
Deve fazer o seguinte: cozinhar um prato de espaguete al dente e temperá‑lo com o molho mais simples — alho, azeite e pimenta vermelha. Sobre a massa já misturada a esses ingredientes, por mais que a etiqueta o condene, rale uma camada de queijo pecorino. Do lado direito do prato fundo cheio de espaguete assim temperado, ponha um livro aberto. Do lado esquerdo, ponha um livro aberto. À frente, um copo cheio de vinho tinto seco. Qualquer outra companhia não é recomendável. Vire ao acaso as páginas de ambos os livros, mas os dois deverão ser de poesia. Só os bons poetas nos curam do fastio de palavras. Só a comida simples e essencial nos cura da saturação da gula.»
Olá G. :-)
EliminarNão conhecia esse autor (brasileiro, ou isso é tradução?) e sim, vou procurar. Muito obrigada pela oferta, gostei muito e fiquei com fome que ainda não jantei.
Bom fim de semana.
Colombiano. O excerto que lhe deixei tem tradução PdBrasil. Infelizmente, por cá, o livro está esgotado. É um mimo.
EliminarBom jantar :)
Muito obrigada, mais uma vez, G. Aprende-se muito aqui nos blogues. :-)
EliminarNão sei se é por ser comilona, mas sempre gostei de descrições de preparação de comida, mesmo das mais simples e literariamente pobres, o que de todo não é o caso desta, tão recheada de simbolismos, tão sensível.
ResponderEliminarLady Kina, é um prazer tê-la aqui. É das comentadoras que ainda não tinha cá vindo e eu secretamente desejava que viesse. :-)
EliminarMuito obrigada. Bom fim de semana.
Palavras temperadas as tuas, Susana. Acompanham tão bem o arroz basmati e um bom livro!
ResponderEliminar( o arroz basmati é ótimo para caril, ai que já comia novamente)
Ah, o caril! É capaz de ser, gastronomicamente, um dos melhores livros para se comer.
EliminarSão os bons livros que matam verdadeiramente a fome. Ou a sede, sei lá.
Bom domingo, Maria. :-)
Adorei a descrição. Não quero ser desagradável mas faz mal comer e ler ao mesmo tempo.
ResponderEliminarOlá Timtim! Não és nada desagradável, muito pelo contrário, gosto sempre dos teus comentários.
EliminarJá tinha ouvido dizer que faz mal, sim, mas eu já li e comi tantas vezes em simultâneo e as minhas análises anuais dão sempre tão boas (até recebo cumprimentos da médica), que olha, se calhar comigo esse mal não pega. :-)
Um beijo e boa semana.
Eu acrescentaria que os olhos comem connosco à mesa e que se lhes dermos boa literatura, está garantida ma boa digestão :)
ResponderEliminarOs olhos comem muito, à mesa e fora dela. :-) Sejam palavras bem alinhadas ou um repasto dos que não se esquecem. (o que eu ainda gostava de ser capaz era ler e passar a ferro ao mesmo tempo, isso gostava)
EliminarPodem duas meias que se calçam, uma em cada pé, namorar-se com a mesma paixão que os vegetais na tua frigideira?
ResponderEliminarNão sei porquê, é quando calçam as meias que me lembro mais da paixão já ardida. Coisas.
Coisas dessas também eu tenho. Foi em muitos calçares de meias que pensei em ter um blogue. Verdade.
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